terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Promessas

Um novo ano se aproximando, e entramos naquela expectativa de novo ciclo, novas chances e revisões. Como todo mundo, também tenho minhas promessas, e nem sempre consigo cumprir todas elas.
Mas 2010 foi um ano definitivamente bom, o que trás para 2011 a responsabilidade de ser ótimo.
Para não fugir a regra, resolvi me prometer algumas coisas, vamos lá:
1) Deixar de tomar refrigerante definitivamente
2) Comer doce respeitando o intervalo mínimo de 15 entre um e outro
3) Cuidar mais do cabelo
4) Aumentar o peso na aula pump
5) Reclamar menos
6) Ter mais paciência
7) Não usar relógio no final de semana
8) Voltar para o curso de inglês
9) Fazer uma certificação
10) Voltar a escrever minhas histórias

São dez itens que vão ficar registrados mais para mim do que para quem eventualmente ler. Que venha 2011, cheio de novidades e expectativas, pois pra mim eu já sei que ele vai passar voando.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Duas notas

É como uma música chata, que não sai da cabeça e faz os pés balançarem. A necessidade de espaço que torna o ar que se respira muito mais pesado. Os óculos na ponta do nariz, como se ele mesmo fosse um empecilho para a visão. Abrir janelas e portas com gestos automáticos, como se a alma pudesse utilizá-los como rota de fuga. Mas a cabeça balança, indicando que tudo não passa de uma mentira. Dolorosa e artificial.

Queria gritar, mas lhe é proibido. Queria correr, mas os pés estão acorrentados. Imagina um laço que ira se prender no primeiro avião, mas algo prende as suas mãos. O tempo se torna herói e vilão, nada mais importa, é apenas uma mentira. Profunda e rasa.

Não dorme mais a noite, pois se esqueceu de sonhar. Os teclados procuram furiosamente com quem conversar. A cerveja está quente, pois ela não é mais necessária para fingir amar. A pupila dilata com as imagens recebidas, escuta carros passando no bairro vizinho, quando o ouvido tenta identificar os sussurros descritos. O relógio toca lembrando que tudo não passa de uma mentira. Real e virtual.

O pedal do acelerador o transforma em um deus. Motor com motor, freada repentina, seca o suor da testa. Não existe mais espaço para se mostrar. Famílias desenhadas ao redor debocham da sua solidão. Sente gosto de sangue na boca ao mesmo tempo em que escuta as buzinas. O sinal verde lembra que ele é a única verdade, o resto não passa de uma mentira. Rápida e tardia.

Por isso quando sentiu o impacto na ponte fazendo o seu carro flutuar, seus orifícios tomados pelas águas escuras de um rio qualquer, pensou ser uma benção para logo em seguida ser tomado pela raiva e num último gesto bater o punho contra o volante. Pois se era bom, era uma mentira. Morte e vida.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Capítulo Dezenove

São Paulo, Morumbi

João estava cansado. Havia andando de um lado para o outro no Rio de Janeiro. Tinha quase certeza de que Josias era realmente o seu tio. Estava com os papéis de transferência para o colégio de Doca. A única coisa que havia ficado pendente era Odete Eztufp. Um nome que estava fora da lista telefônica carioca.
Foi com pânico que viu Doca de olhos fechados, sentado de forma ereta e com os músculos duros como pedra. O grito que se seguiu havia sido de puro medo. O mesmo sentimento que experimentava agora, ao ver as duas pedras grudadas, como se nunca tivessem sido duas.
– Não tem marca nenhuma. – comentou em voz alta.
– Ela as grudou. – Doca murmurou.
– Ela? Ela quem? – João se surpreendeu – Quem esteve aqui, Doca?
– Ninguém. Eu que não estava aqui. Eu estava em outro lugar, numa sala grande, antiga, cheia de fotografias. – Doca olhou para os machucados no braço – Se não fosse o gato, ela teria me matado.
– Doca. Não estou entendendo. Você saiu do flat sozinho?
– Eu não sai. Teresa pode confirmar. Foi através de um sonho. Como um filme que assisti, que o assassino pega as pessoas enquanto elas dormem.
– Foi ela quem te machucou?
– Não. Foi o gato. Quando ela ia me matar, ele saltou. Mas ele usou o meu braço como apoio, e as unhas dele me machucaram.
Se não fosse a pedra, João iria achar que Doca estava mentindo. Mas a evidência estava ali, em suas mãos. Que engraçado. Durante anos sua mãe e sua ex-mulher sonharam com o seu amadurecimento. E esse só chegou com uma sequência de estranhas coincidências.

Doca levantou da cadeira e começou a caminhar pela sala, sentia-se estranho. O coração estava apertado no peito, as pernas tremiam e a cabeça parecia oca. Tinha medo de voltar para aquela sala, e com isso foi até a janela.
A janela do flat tinha como vista outros prédios tão alto quanto o que estavam. Isso lhe dava certeza de que não estava na casa - ele sabia que era uma casa - pois lá, não viu janelas ou qualquer paisagem, apenas pesadas cortinas que davam um ar sombrio.
Ao virar, deparou-se com João lhe observando, seu olhar refletia preocupação. Então lembrou que ele estava no Rio, procurando a ligação dos dois.
– Você descobriu alguma coisa no Rio?
– Não muita coisa. Fui no orfanato que o seu pai morou, mas não existe nada sobre a mãe biológica. Ele passou de mão em mão, até fugir do orfanato e parar na favela em que você nasceu.
– Então você ainda não sabe se somos realmente primos?
– Tenho quase certeza de que você é meu primo. Apesar de não ter evidências, as informações batem com as a agência de detetives.
– E o que isso quer dizer?
– Que a agência fez uma investigação com informações mais sólidas. Minha mãe conhecia os diários de Irina, minha avó. Então, ao contrário de mim, tinha um ponto de partida. – João mexeu em uma pasta – Aqui estão. Eu trouxe os papéis para você estudar aqui em São Paulo.
– Eu vou voltar a estudar?
– Vai. Mas sinto dizer que esse ano você perdeu. Precisamos achar a terceira parte da família, e por consequência, a peça que completa esse quebra-cabeça – olhou para a pedra que ainda estava em sua mão – e uma tal de Odete.
– Odete?
– Sim. O nome dela constava numa lista de pessoas que buscaram informações sobre o seu pai no orfanato.
– Existem muitas pessoas?
– Muitos jornalistas foram até lá, quando seu pai morreu.
– Imagino. Mas por que você acha que ela é diferente?
– Por que ela fez a pesquisa em 1968.
– Nossa. Então ela deve saber toda história do meu pai.
– Sim. Por isso precisamos conversar com ela primeiro, e depois, vamos atrás da última peça.
– Do outro triângulo. – Doca observou o olhar surpreso de João – Olhe. É um triângulo que a completa.
– Sim. Você tem razão.
– Estou ansioso, mas ao mesmo tempo com medo. O que vai ocorrer quando acharmos a peça que completa o quebra-cabeça?
– Não sei, Doca. Não tenho a mínima idéia.
– Sei que ela vai aparecer.
– Ela quem?
– A bruxa. Ela irá unificar a última peça. Mas não quero ficar sozinho com ela.
– Você não vai mais ficar sozinho perto dessas pedras, Doca. E tenho a impressão que isso deve evitar de você encontra-la novamente.
Doca deu um suspiro. Não era covarde. Mas também não era burro de querer encontrar uma criatura que o fazia mudar de lugar num piscar de olhos. João começou organizar os papéis que estavam em sua pasta, o que fez Doca lembrar da pessoa que poderia ser a chave para o passado do seu pai.
– Você tem o sobrenome dessa Odete? Podemos procurar pela internet.
– Podemos sim. Mas antes vamos cuidar do seu braço.
Doca resmungou bastante enquanto João limpava seu braço. Ligou para uma farmácia e pediu uma pomada. Não acreditava que um gato fantasma pudesse causar alguma infecção, mas era bom não se arriscar.
– Como era esse gato?
– Igual ao da rodovia. – João parou de passar a pomada e o olhou – Quando você quase me atropelou, lembra? Tinha um gato na rodovia. Era igual aquele. Só que esse falava e tinha uma voz de mulher.
– Uma gata?
– É. – Doca retribuiu o sorriso.
– Naquela noite cheguei a procurar o gato. – João fechava a pomada e guardava tudo em uma pequena bolsa – Achei que tinha atropelado o bichano também. Mas ele sumiu, achei que tinha se escondido no meio do mato.
– Eu sempre achei que ele tinha me salvo. Foi por causa dele que me mexi e fui para o acostamento.
– Quer dizer que, no lugar de um anjo da guarda você tem um gato da guarda?
– Deve ser. Vamos procurar a Odete?

Entraram em vários sites, depois de duas horas sentados na frente do computador, encontraram, na lista telefônica on-line de Curitiba, Odete Eztufp.
– Tem até o endereço! – Doca apontou para a tela. – Rua, bairro, número...
– É o milagre da Internet.
– E agora?
– Agora? Agora nós vamos fazer as malas, Doca. Iremos vamos fazer uma visita a Curitiba. – João declarou.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Esperar

Creio que a espera seja uma das ações mais complexas de ser realizada pelo ser humano. Com poderes para unificar em poucos minutos sentimentos como ansiedade, raiva, nervosismo e tristeza. Mas também pode conter alegria, satisfação e realização.

A espera pode dar fim a unhas cuidadosamente feitas ou simplesmente colocar a leitura de um livro em dia. Ser o princípio de uma decisão brusca ou a origem de boas idéias. Um aumento na pressão arterial ou a prática de uma respiração profunda seguida de meditação com olhos abertos.

Esse momento também propicia a observação de locais, pessoas e móveis. Se o local for confortável, abre alas para a fantasia, um amante inexistente abrindo a porta, o bilhete premiado na loteria, um tsunami no mar de cimento. O único elo é o relógio.

Se for uma entrevista de emprego, é um teste para os nervos do candidato, mas também é uma avaliação do empregador com os compromissos marcados e o seu respeito em relação aos subordinados. A reunião com amigos pode gerar apelidos, o encontro com o amado pode gerar separação.

Espera, esperar, esperamos, esperávamos, palavra simples, comum, as vezes pequena, as vezes essencial. Todos esperamos por algo ou esperamos não mais esperar. Profunda ou rasa, perto ou longa, segundos, minutos, horas, sinônimo de liberdade, amiga da prisão.

Para as mulheres, pode ter como companheira inseparável uma caixa de bombom. Telefone silencioso, noite escura, travesseiro vazio. Momento em que o tempo se torna uma ampulheta com grãos de areia. Aumento de salário, apartamento ou bicicleta. Aliança ou solidão. Carreira ou filhos. Por quem devo esperar e a quem devo fazer esperar?

Simplesmente e unicamente espera.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Capítulo Dezoito

Curitiba, Cristo Rei

– A... – Os olhos de Clarissa se arregalaram – A pedra...
– Sim. A pedra que vocês me deram de aniversário. Vou leva-la para a empresa. Para deixar como enfeite.
– Enfeite. – balbuciou Clarissa.
– Você está bem?
– Estou.Com licença.

Clarissa saiu atordoada, sem saber o que fazer, abriu a porta do apartamento e pegou o elevador, quando se deu conta, estava batendo na casa de Odete.
– Oi, minha querida. – Odete olhou Clarissa com mais atenção – O que houve?
– Você tem um tempo livre?
– Claro. Entre, menina.
Clarissa se dirigiu até o sofá cor-de-rosa e sentou-se.
– Eu precisava falar com alguém. Preciso que alguém me explique como ela saiu do lago.
– Calma. Quem saiu do lago? – ao notar os olhos vidrados de Clarissa, sentou-se aos seu lado e cobriu as mãos da garota com as suas. - Você não quer me conta a história desde o início?
– Hoje de manhã, eu peguei uma pedra em formato triangular do quarto da Lúcia. Foi um presente nosso, no último aniversário dela. – Clarissa encarou Odete. – Notei que ela tinha um reflexo bonito, amarelo escuro e rosa, quando atingida por uma luz mais forte. Pensei em usa-la de enfeite para um evento da empresa.
– Mas...
– Mas eu não pedi a Lúcia. Simplesmente a peguei e coloquei na minha bolsa. Quando cheguei na Ópera de Arame, um homem me parou, e disse que eu estava carregando um fardo que não era meu.
– Que homem é esse?
– Eu não sei. Só sei que não podíamos entrar no teatro, pois havia pessoas lá dentro. Eu não encontrei nenhum lugar para sentar e resolvi me equilibrar na grade da ponte mesmo.
– Você sentou na grade? Ficou maluca menina! E se você caísse?
– Mas foi o que aconteceu. Ou quase aconteceu. Um grupo de adolescentes apareceu correndo do nada e um esbarrou em mim. – Clarissa soltou as mãos, e começou a mexer no cabelo nervosamente. – A minha sorte é que os meus pés estavam enroscados nos desenhos da grade... e eu fiquei de ponta cabeça.
– Minha Nossa Senhora.
– Os meus colegas e outro homem que me ajudaram a levantar. Mas no momento em que quase cai, a pedra escorregou da minha mão e foi parar no lago.
– E você não sabe como contar para Lúcia? – Odente enxugou as lágrimas que haviam começado a surgir nas faces de Clarissa.
– É pior do que isso. – A voz de Clarissa soou desesperada. – Agora a pouco, quando entrei no quarto de Lucia para lhe contar, e implorar por desculpas... – Olhou para suas mãos que tremiam antes de voltar a encarar Odete. – A pedra estava nas mãos dela. Odete. A pedra voltou para o quarto da Lúcia.
Odete ficou pálida. Sem conseguir pronunciar uma palavra, levantou-se. Caminhou até a janela e olhou em direção ao Jardim Botânico iluminado pelas luzes da noite. Ficou muito tempo em silêncio, com as mãos juntas, grudadas ao peito. Quando voltou a falar com Clarissa, sua voz era rouca e séria.
– Há muito tempo atrás, eu ouvi falar de uma pedra retangular, com reflexos amarelos e rosas. – Lentamente, retornou para o sofá. – Conforme a sua dona, era uma pedra maldita, que levava a morte.
– Será que demos uma pedra amaldiçoada para Lúcia?
– O que não entendo, é que conforme Irina, essa pedra teria uns dez centímetros, mas pelo que você contou, ela é bem menor.
– A senhora disse Irina?
– Sim, Por que?
– É o mesmo nome da bisavó de Lúcia.
– É mesmo? Que coincidência. Você sabe o sobrenome dela?
– Não. Mas posso descobrir.
– Enquanto você não descobre, e eu penso melhor sobre o assunto, vamos tomar um chá. – Odete sorriu, voltando a sua postura natural e dando uma palmadinha na mão de Clarissa.

Lúcia terminou de arrumar as suas coisas e voltou para a sala. Encontrou Soraya debruçada sobre os livros.
– Soraya?
– Oi. Diga.
– O que a Clarissa tem?
– Não sei. Ela está estranha, né?
– Bem estranha. – Lúcia suspirou - Vou terminar de arrumar as minhas coisas e não te atrapalhar mais. Quando ela voltar, a gente conversa.
Mas quando Clarissa voltou, Lúcia também estava ocupada com os trabalhos da faculdade. Com dores nas costas, Clarissa tomou mais um remédio e foi para o seu quarto.

– Clarissa! Levanta. Você está atrasada. – Soraya gritou.
– Eu estou de atestado. Não enche.
– Então vamos nós. – Soraya levantou os ombros. – À noite conversamos. E descobrimos que bicho mordeu ela.

Chegaram na empresa e na sala, além dos colegas, havia uma criança, apresentada como o filho mais velho de Heloísa. Depois de cumprimentar todos, Lúcia começou a ajeitar a sua mesa. E a primeira peça que colocou foi à pedra triangular.
– Que legal. Posso ver?
– Rafael. Não incomode a Lúcia. – Heloísa repreendeu.
– Ele não está me incomodando – Lúcia respondeu, sorrindo para o menino – pode ver sim.
O menino levou a pedra até a janela e observou o reflexo admirado.
– O meu grupo de ciências vai apresentar hoje uma exposição sobre diferentes tipos de pedra. Você me empresta?
– Rafael!
– Não tem problema, Heloísa. Pode levar, Rafael. Eu a uso apenas para enfeite.
– Não se preocupe. Eu vou cuidar bem. E amanhã minha mãe traz de volta.
– Não tem pressa.
Heloísa saiu, levando Rafael para a escola. Nisso, uma moça de cabelos curtos e castanhos se aproximou.
– Olá. Vocês devem ser as novas colegas. Meu nome é Verônica e sou assistente social.
– Prazer, Verônica. Eu me chamo Soraya e está é a Lúcia.
– Oi, Verônica.
– Não pensem mal de mim. – ela olhou para a porta se certificando que ninguém estava ouvindo – mas não deixem nada de valor, sentimental ou financeiro, em suas mesas. Se o Rafael gosta, leva e nunca mais devolve.
– Sério? Lúcia sentiu-se entristecer ao pensar na pedra que havia ganhado de presente das amigas.
– Sério. A Heloísa não faz nada. Se você reclamar, ela ficará bastante aborrecida.
– Se você soubesse, não teria emprestado.
– Seria pior, Soraya. Uma estagiária fez isso, e Heloísa não renovou o contrato dela. Todos adoravam o trabalho que ela fazia em campo, mas por causa de uma lapiseira, ela foi mandada embora.
Soraya e Lúcia observaram as mesas pessoais das outras colegas e notaram que só tinham porcaria. Aproveitando a ausência de Heloísa, guardaram tudo o que tinham de valor.

Foi um dia bastante cansativo. Quando chegaram em casa, encontraram Clarissa olhando um filme. Soraya foi tomar banho e Lúcia aproveitou para pegar um suco e sentar ao lado de Clarissa.
– Que filme é esse? – Lúcia observou a cena em que a mulher pilotava um avião.
– Além da Eternidade.
– Sobre o que... – antes de completar a frase, o telefone de Lúcia tocou – Alô? Oi Heloísa. Meu Deus. E ele está bem? Na UTI? Mas como foi que aconteceu? Não se preocupe com isso, era apenas uma pedra que eu usava para decoração. Concentre todas as tuas atenções para o Rafael. Pode deixar, eu aviso o pessoal.
Quando desligou o telefone, Clarissa a olhava, muito pálida.
– O que houve? – perguntou com uma voz trêmula.
– O Rafael, filho da Heloísa, sofreu um acidente na feira de ciências do colégio. Um grupo próximo resolveu apresentar uma experiência que acabou explodindo tudo, não entendi direito. Sei apenas que o menino está queimado e na UTI.
– De que pedra você estava falando?
– Clarissa, tu parece um papel de tão branca. Está tudo bem?
– De que pedra vocês estavam falando? – Clarissa gritou.
– Hei. Que gritaria é essa? – Soraya estranhou ao sair do banheiro.
– Me diz, Lúcia. Que pedra é essa?
– É a minha pedra. A pedra que vocês me deram de aniversário.
– E o que o filho da Heloísa estava fazendo com ela?
– Vocês podem me dizer o que está acontecendo? – reclamou Soraya.
– A Heloísa me ligou. – Lúcia começou a explicar. - O Rafael sofreu um acidente na escola. Está na UTI. E ela me ligou para dizer que ele perdeu a minha pedra. E a Clarissa está surtando desde que ouviu isso.
– Por que ele estava com a tua pedra? – Clarissa perguntou, respirando fundo para se acalmar.
– Ele pediu emprestado a Lúcia, ia apresentar um trabalho sobre pedras na escola. – Soraya respondeu, observando o olhar furioso de Lúcia. – Mas que acidente ele teve?
– O grupo do lado fez uma experiência mal sucedida e provocou um incêndio. Tadinho. E a Heloísa preocupada, que ele havia perdido a minha pedra.
– Você já olhou no seu quarto?
– Que pergunta besta é essa, Clarissa? Enlouqueceu?
– Não. Você já entrou no seu quarto desde que chegou?
– Não. Por que?
– Olhe. – E sem dizer mais nada, Clarissa sentou-se novamente olhando para a televisão, como se prestasse a atenção no que estava assistindo.
Lúcia sentia um desejo enorme de bater em Clarissa. “Deve estar de TPM.” Pensou, enquanto se dirigia ao quarto, para buscar sua roupa e tomar um banho. Soraya foi para a cozinha, fazer um chá de cidreira, para acalmar os ânimos. Quando retirou a primeira xícara do armário, ouviu o grito de Lúcia, e a derrubou no chão, transformando-a em cacos.
– Meu Deus! O que houve Lúcia?
Lúcia voltou para a sala mais pálida que Clarissa.
– Ela achou a pedra.
E como num eco as palavras de Clarissa, Lúcia estendeu a mão direita e exibiu a pedra.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Entre árvores e bons velhinhos

Fazia algum tempo que eu ignorava o espírito de natal e acabava me estressando com as compras de última hora no mercado (e suas filas quilométricas) e com os presentes. O dia 02/01 trazia uma espécie de alívio depois de uma exaustiva passagem de ano.

O que mudou em 2010? Um final de semana em Gramado. Ao atravessar uma rua no meio da tarde de sábado é possível se deparar com um ônibus cheio de senhores vestidos de vermelho e com longas barbas brancas. Todos sorriem e abanam com firmeza e calma que lhe são características.

Eles também podem se tornar gigantes, caminhando pelos pontos turísticos e sendo vistos de diversos pontos.

Mas o momento sublime ocorre às 21hs, quando a cidade está com todas as luzes da decoração apagada. A grande árvore começa a se iluminar aos poucos até que bum, tudo se ilumina e é impossível segurar o sorriso. O grande “AH” que quebra o silêncio indica, todos voltaram a ser criança.

Quando retornei no domingo, estava com o meu espírito natalino acordado, desejoso por uma árvore com bolas coloridas na sala, bonitos pacotes de presente e uma mesa cheia de amor e carinho e é claro, uma folha de calendário para fazer a contagem regressiva, afinal, o que Papai Noel irá me trazer?

domingo, 28 de novembro de 2010

Capítulo Dezessete

Belo Horizonte, Bonfim

– Cemitério? – perguntou Antônio – O que vamos fazer em um cemitério?
– Tenho uma intuição. Mas não tenha medo, o cemitério do Bonfim é diferente.

Em silêncio, percorreram o caminho de um bairro a outro. Vivian não tinha certeza do que estava fazendo. Nem sua mãe havia achado uma resposta para não haver nada sobre os herdeiros de Irina nas peças da casa. Entre todos os lugares de Belo Horizonte que Elvira poderia ter carregado uma maldição, só passava pela cabeça de Vivian um único lugar: o próprio tumulo.
Estacionaram próximo a porta de entrada. Caminharam devagar, observando a guarita de entrada e os vários caminhos. As vezes, paravam e admiravam uma escultura, para manterem a imagem de turistas ou simplesmente por ser realmente bela.

– Ele é imenso. – comentou Antônio
– É sim. Me parece que tem mais de cento e oitenta e cinco mil sepultamentos. É praticamente uma cidade.
– Uma cidade de mortos. – Antônio comentou – Lembra um pouco aquele cemitério de Buenos Aires, onde Evita está enterrada.
– É verdade. Como lá, as esculturas foram feitas por artistas de renome na época. Quase passa por um museu.
– É verdade. E ele já virou ponto turístico?
– Não sei. Há um tempo atrás, tinha um projeto para isso, mas não sei se foi aprovado ou não.
– O que procuramos?
– O mausoléu dos Melo.
– Por que?
– Acho que a resposta que procuramos está lá.
– No mausoléu? Mas como vamos saber?
– Não sei. Preciso ir lá e ver o que ela me diz.
– Vivian! Ela não irá te dizer nada.
– Calma. – Vivian riu. – Ainda não estou louca. Confie em mim.

Percorreram um longo caminho, até chegar em uma parte mais antiga. O nome das famílias tradicionais dos anos quarenta gritava nas lapides de mármore. Vivian parou na frente de uma e passou os dedos.

“Carlos Ribeiro Melo
1915 – 1940
Eterno são os jovens que brilharam em nossas vidas.”

– Ele morreu jovem.
– Muito jovem. Eu era criança, mas ainda me lembro dele. Sempre sorrindo e arrumando os cabelos negros. Era muito vaidoso.
– Como ele morreu?
– Na teoria? Em um acidente de trem.
– Na teoria? Como assim?
– Na prática, Irina colocou uma pedra amaldiçoada na pasta de Carlos. Ele a carregava no momento do acidente.
– Irina também era bruxa?
– Não. Irina ganhou essa pedra de Elvira. Minha mãe acha que Irina descobriu que era a sua sentença de morte e a repassou para Carlos. Como uma vingança.
– Mas ela não o amava?
– Esse é o grande mistério. Quando eles se casaram, minha mãe acreditava que sim. Só que o fato dela o empurrar para a morte, fez todos duvidarem. Tanto que ela foi embora da cidade sem um único tostão.
– Nossa. E o que aconteceu com ela?
– Nos primeiros anos eu não sei. Mas acabou em São Paulo. Mamãe achou uma foto dela em um jornal, quando seu Adriano ainda estava vivo. Parece que fez um bom casamento por lá.
– Levou a vida adiante.
– Sim. Aqui está.

Antônio olhou na mesma direção e viu o mausoléu dos Melo. Entraram pela pequena porta. Sobre cada tumba, um grande mármore cor de gelo refletia a pouca luz do sol que por ali entrava. No lado direito, encontrava-se o que um dia havia sido o corpo de doutor Adriano. No lado esquerdo, refletindo de forma estranha as cores rosa e amarelo escuro, a morada eterna de madame Elvira.
Quase por instinto. Vivian colocou as duas mãos sobre o mármore e fechou os olhos. Estava ali. Ela tinha certeza que estava ali.

– Antônio. Vou ser obrigada a lhe pedir uma coisa.
– O que?
– Precisamos abrir o tumulo de madame Elvira.
– Você pirou, Vivian?
– Está aqui. Tenho certeza que está aqui. Você vai me ajudar?
– Não concordo com o que você está me pedindo. – Antônio suspirou. – Mas como prometi ajudar, vou faze-lo até o final. Quando você quer abrir o tumulo da bruxa?
– Hoje à noite.
– Mas... precisamos de mais tempo para observar o funcionamento. Os horários dos vigias, os acessos... – Antônio gesticulava sem parar.
– Você viu algum vigia por aqui?
Antônio olhou para os dois lados. Caminhou um pouco e voltou.
– Não. – Disse surpreso.
– Se de dia eles não se animam vir na parte velha, não será à noite.
– Mas como vamos fazer para entrar?
– Olhe para a sua direita. Mais três quadras e temos um muro. Essa será a nossa porta de entrada... e saída.

Eram mais de onze horas da noite quando voltaram ao cemitério. Dessa vez, estacionaram em uma das áreas mais escuras, que eram próximas a parte mais antiga. Colocando uma escada em um dos muros laterais, Antônio verificou se o mausoléu estava próximo, assim como se havia algum vigia a vista. Repetiu a operação cinco vezes, até encontrar o ponto indicado durante o dia por Vivian.
Antônio posicionou uma segunda escada para descerem e ajudou Viviam a passar pelo muro. Vivian achou incrível conseguir fazer aquilo. Quando voltasse pra casa, iria comprar um presente especial para a sua professora de yoga.
Com a ajuda de lanternas, chegaram ao tumulo de Elvira. Antônio pegou um pé de cabra e começou a levantar a tampa de mármore. Seus braços tremiam, o suor começou a escorrer pela sua testa. Medo e adrenalina pareciam lhe dar forças para finalmente levantar todo o tampo e deixa-lo encostado à parede.

– Não há terra. – exclamou surpreso. – E o caixão fica bem próximo.
– Melhor. Assim, será mais fácil.

Vivian estendeu o braço e soltou a tranca. Não podia contar com a ajuda de Antônio, que segurava a pesada tampa. Esticou o outro braço e tentou levantar a tampa. A princípio não achou nada que pudesse puxar. Depois de tatear, encontrou uma parte mais elevada e puxou para cima. Com um reflexo que não imaginava, conseguiu colocar as mãos abaixo da tampa e levanta-la totalmente.
Depois de conseguir apoiar a tampa do caixão, de forma que conseguisse segura-lá com uma mão. Pegou a lanterna que estava no bolso do seu casaco e a ligou. Quando direcionou a luz para o caixão, Antônio teve que segurar um grito. O que virão foram o corpo de Elvira intacto, usando um vestido longo e azul, seus braços se cruzavam como se fosse uma vampira. Embaixo deles, um livro.

– Antônio. Você consegue segurar com uma das mãos a tampa do caixão? – Vivian sussurou.
– O que você vai fazer, Vivian?
– Preciso tirar o livro debaixo dos braços dela.
– Você está brincando né? Você vai mesmo mexer no corpo?
– Eu tenho que fazer isso.
– E se ela acordar?
– Não vai. Ela está morta.
– Mas o corpo dela está intacto! Depois de todos esses anos...isso não é normal.
– Você consegue ou não? – Vivian elevou a voz, percebendo que o pânico começava a tomar conta de Antônio.
– Vou tentar.

Antônio apoiou uma das pernas na parede. Com um esforço supremo, tirou a mão que segurava o mármore e pegou a tampa. O mármore veio para frente, o que fez ele pedir num fio de voz:
– Ande rápido. Não vou agüentar muito tempo.

Vivian se curvou e levantou os braços. Sentiu o gelo daquele corpo a envolver por um segundo e depressa, puxou o livro. Por um momento, achou que Elvira iria abrir os olhos e segura-la. Mas isso não aconteceu.
Rapidamente, colocou o livro no chão e foi baixar a tampa do caixão. Com cuidado o recolocou.

– Não esqueça a tranca. – Antônio avisou.
Baixaram o mármore e começaram a sair do local. Olharam para os lados, mas não havia nenhum sinal de vigias. Caminharam rapidamente até o muro, onde encontraram a escada. Após passarem pelo muro, correram até carro. Antônio destravou as portas, guardou as escadas na parte traseira e se dirigiu ao banco do motorista. Vivian aguardava sentada no banco do passageiro, com uma visível dificuldade para respirar.

– Você não tem mais idade para isso, Vivian. – Antônio a censurou.
– Eu sei. Mas mamãe me dá forças.

Com o carro em movimento, Vivian ligou a luz interna e olhou o livro pela primeira vez. A capa era preta e de couro. Sem nenhuma inscrição ou identificação. Ao abri-lo, começou a folhar as páginas. Antônio a observou com o canto de olho, como que esperando uma justificativa para a loucura que haviam cometido.

– Então, o que é? – Perguntou, não agüentando mais. Vivian fechou o livro e olhou para a rua, aumento a angústia de Antônio. Após respirar profundamente, voltou o seu rosto para ele e respondeu:
– Encontramos. Pelos poucos parágrafos que li, não é exagero meu dizer que encontramos o livro de Elvira.

domingo, 21 de novembro de 2010

Capítulo Dezesseis

São Paulo, Morumbi

Doca acordou com uma batida na porta. Olhou no relógio e já eram dez horas. “Essa cama me faz dormir demais.” Pensou, enquanto se levantava e caminhava tropeçando nas próprias pernas.
Abriu a porta e uma moça loira, com o uniforme cinza do hotel, lhe sorriu.

– Bom dia, Doca. Você não deveria abrir a porta assim. – disse enquanto empurrava um carrinho para dentro do flat. – Meu nome é Teresa. E eu trouxe o seu café da manhã.
– Bom dia. – Doca respondeu sem jeito. – Não estou acostumado a perguntar quem é.
– Então é bom você aprender. Mesmo aqui, é perigoso ir abrindo as portas. Temos uma rotatividade grande de pessoas estranhas circulando aqui dentro.

Doca concordou com um leve acesso de cabeça. Seus olhos brilharam ao verem os pães e sentiu uma grande fome.

– Bom, está tudo aqui. Se precisar de alguma coisa, basta pegar o telefone e me ligar, certo?
– Certo. E, obrigada Teresa.
– De nada. Ao meio-dia venho trazer o seu almoço.

Doca ligou a TV. Enquanto assistia um desenho japonês, comia com vontade as bolachas de chocolate. Quando achou que a barriga estava bem cheia, sentou-se numa das poltronas e ali ficou.
Antes do meio-dia tomou um banho. Aproveitou e pegou um pouco do gel de cabelo de João e colocou no seu. Olhando-se no espelho, brincou:

– E ai, não tô bonito? – O menino refletido no espelho sorriu.

Voltou ao quarto e abriu a bolsa que era da sua mãe, de dentro da carteira, tirou uma foto em que os dois estavam abraçados. Ele era pequeno, deveria ter um ou dois anos. E sua mãe, muito jovem, parecia muito mais a sua irmã do que a sua mãe.

– E ai, mãe? Não fico legal de bacana. – suspirou encarando a figura da foto – Gostaria que você estivesse aqui. Tenho certeza que ia gostar do João. Apesar de ter dinheiro e usar roupas de playboy, é um cara legal.
Uma batida na porta lhe tirou dos devaneios, devia ser Teresa. Quando ia abrir a porta se lembrou.

– Quem é?
– É o almoço. – Ouviu uma risada. – É a Teresa, Doca.

Doca abriu a porta ligeiro. Ela empurrava outro carrinho. Ajeitou a mesa e colocou um prato com arroz, bife, ovo e batata-frita. Um prato extra com mais um bife e mais batata. E mouse de chocolate.

– Uau. Adoro batata-frita. – Doca exclamou.
– Então, divirta-se.

Doca sentiu-se um rei. Nunca tivera um dia desses: comer, assistir TV, dormir. Não fazia nada, era apenas servido. E assim, assistiu TV até o lanche da tarde. Depois de comer o enorme sanduíche, não resistiu e acabou por dormir na poltrona.

Quando abriu os olhos, estava com frio. Com surpresa, constatou que não estava mais no flat de João e sim numa sala espaçosa. Os móveis eram antigos, de madeira. Os quadros, que estavam pendurados nas paredes, retratavam pessoas com roupas antigas, parecidas com as fotos que apareciam nos livros de história.

– Como ousa invadir a minha casa? – uma voz áspera perguntou.

Doca emudeceu. Olhou para a mulher a sua frente: um tanto velha, com um longo vestido, seus olhos escuros refletiam algo que fez o seu coração se apertar. Não sabia onde estava, nem quem era aquela criatura. Tentou mexer os dedos e não conseguiu. Encontrava-se paralisado.

– O que você pensa que é, sua imundice? – ela perguntou, encarando-o – Você é bizarro, uma anomalia da natureza.

“Isso é um sonho” pensou Doca “culpa daquele filme de terror que assisti com o João. Daqui a pouco a Teresa vai chegar e bater na porta, e eu vou estar feito um babaca, me borrando todo.”

– Ninguém vai chegar – disse a mulher lendo os seus pensamentos – e agora, você está em minhas mãos.

Ouviu-se um miado. Doca conseguiu mexer a cabeça e viu o mesmo gato da rodovia. “Nunca mais como tanto pão. Bem que o João me disse que fazia mal comer tanto e dormir”.
– Cale a boca. – a mulher ralhou com o gato – Não existe nada que você possa fazer.

O gato caminhou vagarosamente, indo para trás da poltrona de Doca. Esse pensou em se levantar, mas o olhar da mulher, que mais parecia uma bruxa, o impediu. Ela ergueu uma mão e a bolsa de sua mãe veio pelo ar. Vagarosamente, a pedra foi retirada. Logo em seguida, a bolsa caiu no chão.

– Hei. Não jogue a bolsa no chão.
– Por que não? – ela riu – Já joguei a sua mãe em um caixão, jogar sua bolsa no chão não é nada.
– Mentirosa. Minha mãe morreu em um acidente. – Doca queria que sua voz soasse com força, mas o que ouviu foi uma fina e chorosa criança.
– É verdade. Acidentes acontecem. – dizendo isso, ela ergueu a outra mão e a outra pedra veio. Murmurando palavras estranhas, as pedras se encaixaram. – E agora, teremos outro acidente.
– Pare com isso, Elvira. – Doca ouviu uma voz atrás de si. – Ele é apenas uma criança, não tem culpa de nada.
– Todos carregam a culpa. E ele é o que melhor simboliza. Quer algo melhor que um bastardo para descender de uma vagabunda?
– Eu não sou um bastardo. – Doca reclamou.
– Mas seu pai era.
– O seu problema é comigo. Deixe-os em paz.
– Eles só terão paz, quando eu estiver em paz. Feche a boca, maldita, que o seu anjo agora irá para o céu.

Doca arregalou os olhos quando a mulher avançou em sua direção, nesse momento, o gato pulou na poltrona, Doca sentiu suas unhas ficarem em um dos seus braços, antes de ele dar um novo pulo.

– AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH. – Doca gritou.
– Calma, Doca. Sou eu, João.
Doca olhou João, e sem pensar, o abraçou. João, preocupado, retribuiu o abraço do menino. Ele tremia, estava muito assustado.
– O que houve, Doca? O que aconteceu? – João falou enquanto o afastava de leve. Notou sangue no seu braço direito. – Doca o seu braço está sangrando. Quem fez isso com você?

Sem conseguir falar, Doca simplesmente apontou para o chão. João acompanhou a direção e viu as pedras próximas à televisão.

– O que as pedras estão fazendo ali, Doca?
– Ela as pegou. – Doca sussurrou sem desviar os olhos do objeto.
– Ela quem? – João estranhou.

Mas Doca não respondia. Sem outra opção, João se encaminhou até as pedras, e ao pegar uma, a outra veio junto. Estavam coladas.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Capítulo Quinze

Curitiba, Ópera de Arame

– Meu Deus – murmurou Clarissa de ponta cabeça, sentia os pés enrolados na grade, mas não sabia quanto tempo iria agüentar. Não tinha coragem de gritar.
– Clarissa! O que aconteceu? Agüente firme. – Jorge falou – Marcelo! Me ajude.
– O que é isso? Como ela foi para ai?
– Não sei. Segure as pernas dela. vou pedir para ela dar um impulso e ver se eu alcanço as suas mãos.
– Ok.
– Clarissa! O Marcelo está segurando as suas pernas. Dê um impulso com o corpo e estenda os braços. Tente pegar na minha mão.

Clarissa sentia as mãos de Marcelo em sua panturrilha. Ele era magro e isso lhe dava medo, pois achava que ele não agüentaria o seu peso. Por outro lado, não podia se arriscar a cair. Deu o primeiro impulso e não chegou nem perto das mãos de Jorge. Sentiu uma dor nas costas ao bater com elas na grade.

– Não desista, Clarissa. Tente novamente. – Jorge gritou.

Respirando fundo, Clarissa deu um novo impulso e dessa vez seus dedos chegaram a passar pela mão de Jorge. Um novo choque com a grade e Clarissa não segurou nem o grito nem a retenção do corpo. Seus pés começaram a se soltar e Marcelo se apavorou.

– O que vocês estão fazendo? Meu Deus, ela tentou se matar? – disse uma voz ao mesmo tempo em que Clarissa sentia mais duas mãos em seu corpo.
– Não. Ela caiu. Mas não me pergunte como. – Clarissa ouviu Jorge respondendo. – Clarissa. Temos mais gente aqui. Tente mais uma vez.

Clarissa deu um novo impulso e dessa vez, suas mãos agarraram as de Jorge. Sentiu seu corpo ser puxado. Quando colocou os pés no chão, observou uma multidão em sua volta, entre eles o rapaz que a empurrou.

– Foi ele – ela apontou – foi ele que me empurrou.
– Eu?! – exclamou o rapaz. – Essa mulher é louca!
– Foi um acidente. – Disse uma voz mais ao fundo. – Ele se desequilibrou e encostou nela, que estava descuidadamente sentada em um lugar perigoso, carregando um peso que não era seu. – conforme a voz foi se aproximando, Clarissa o identificou como o homem cabeludo.
– Obrigado Samuel. – disse o guarda ao qual Clarissa reconheceu pela voz, como o homem que havia lhe ajudado – Vocês dois foram errados. Rafael – disse apontando para o rapaz – você e seus amigos sabem que não é para correr aqui. E você mocinha – disse apontando pra ela – por usar indevidamente a grade como banco. – suspirou – Como estão todos bem, vamos todos circulando.
– Vamos, Clarissa. Ainda temos trabalho a fazer.

Clarissa acompanhou o colega, dentro da ópera lembrou da pedra de Lúcia. Quando despencou, sua mão abriu e ela chegou a ver a pedra caindo dentro da água. Agora, teria que se explicar.


– Então? – Soraya perguntou ansiosa – Que tal o seu primeiro dia de trabalho?
– Um sonho. Nem acredito estar trabalhando num lugar como esse.
– Eu também me senti assim. Tinha medo de estar sonhando, acordar e dar de cara com aqueles malas.
– Engraçado, tive a mesma sensação. – Lúcia sorriu – Sabe, achei que ia sentir falta do Júnior, mas desde o dia que ele conseguiu a minha demissão...
– Você finalmente se deu conta que ele não era um príncipe encantado?
– Nem sapo encantado.

Ambas gargalharam. Ouviram o sinal. Era hora de ir embora. Pegaram as bolsas e Lúcia olhou mais uma vez para a sua mesa. “Minha mesa” pensou “preciso trazer algumas coisas para colocar nela, dar o meu toque pessoal.”

– Cadê a Clarissa? – Lúcia perguntou a Soraya quando entraram no ônibus.
– Não sei. Samuel cadê a Clarissa?
– O Jorge ia largar ela em casa. Ele está com o carro da empresa.
– Obrigada.
– Achei que seria rápido lá. – comentou Lúcia.
– São muitos detalhes. E provavelmente eles iriam passar na empresa contratada para conversar.
– Achei que eles realizavam as reuniões dentro da Ambiente.
– Por via de regra sim. – Soraya começou a explicar – mas a empresa de decoração fica próxima a Ópera de Arame, não havia sentindo virem pra cá.


Quando Clarissa chegou em casa, o ônibus dos funcionários já estava retornando. Suas costas doíam muito, e o remédio receitado pelo médico ainda não fizera efeito. Soltou o cinto devagar. Jorge a olhava preocupado.

– Você está bem?
– Bem, bem eu não estou. Mas vou sobreviver.
– Se você precisar de qualquer coisa, pode contar comigo.
– Obrigado Jorge. Você já foi muito gentil me levando médico. Pode ir descansado, não quero que briguem contigo por chegar atrasado em casa.
– A única pessoa que poderia brigar é a minha mãe – Jorge disse enquanto pegava as mãos de Clarissa – mas ela ia ficar feliz de conhecer você.

Clarissa não sabia o que dizer. Muito vermelha, murmurou uma despedida e saiu do carro. As dores nas costas milagrosamente sumiram. E seus pés pareciam estar caminhando sobre as nuvens. Entrou no elevador com olhos sonhadores e somente quando colocou a chave na porta, lembrou da pedra de Lúcia.

Nesse momento, todas as luzes se apagaram e suas mãos tremeram. Sentiu algo passando rente ao seu corpo. Em desespero, girou a chave, quando deu a segunda volta as luzes voltaram. Abriu a porta e encontrou suas duas colegas terminando de arrumar a mesa.

– Chegou bem na hora hein?! Brincou Lúcia.
– O que houve, Clarissa? – Soraya perguntou.
– Nada.
– Você está com uma cara estranha. – Soraya a olhava com o semblante sério.
– Estou cansada. Só isso.
– Como é a Ópera? – Lúcia perguntou, tentando distrair as duas.
– Bonita. Muito bonita. – Sentou-se com cuidado, colocando a cabeça para trás e fechando os olhos. – Vamos ir lá qualquer dia. Mas todas de tênis.
– Você está machucada? – Soraya sentou-se também.
– Eu... eu cai lá.
– Tadinha. – Lúcia serviu chá para todas.
– O que aconteceu? – Soraya questionou, querendo detalhes.
– Meu salto prendeu na grade da ponte e eu cai – mentiu – mas me esqueçam um pouco e contem: como foi o primeiro dia de Lúcia?

Animadas, as duas começaram a contar sobre o passeio que deram na empresa, as pessoas que Lúcia conheceu e as suas primeiras impressões.

– Heloísa é fantástica. – comentou Lúcia, com um sorriso de orelha a orelha.
– Você diz isso porque não conheceu o chefe da Clarissa. – Soraya suspirou. – Jorge é tão lindo.
– Hum... romance no ar?
– Não pra mim. – Soraya riu – Ele é toda da Clarissa. Tanto que eles se tratam como colegas e não como chefe e subordinada.
– Pare de falar besteira. – Clarissa ficou constrangida. – O Jorge é apenas um rapaz querido. É que vocês estão acostumadas com os Júniors da vida.
– Me diz – arqueando as sobrancelhas, Soraya a encarou – se ele se aproximasse de ti, tu não irias derreter?

Por um momento, Clarissa sentiu novamente as mãos quentes de Jorge segurando as suas.
– Eu vou é tirar a mesa. – Levantou com o rosto vermelho.

Lúcia e Soraya caíram na gargalhada. Enquanto Clarissa levava os frios para a cozinha. Não iria contar nada para elas agora, ainda não era o momento. Não sabia se Jorge falava sério, e não queria virar amante de ninguém. Ainda duvidava que um homem como ele não tivesse nenhum tipo de relacionamento.

– Eu vou para o meu quarto, separar umas coisinhas para colocar na minha mesa particular. – Clarissa ouviu Lúcia comentar alegremente.
– Gostou, né? – Soraya brincou.
– Amei. E uma das coisas que irei levar é a pedra que vocês me deram.

Clarissa fechou a porta da geladeira, sentindo-se tão gelada quando os alimentos que ali estavam. Sem pensar, foi para a sala, mas Lúcia não estava mais lá. Caminhando até o quarto, não sabia como se explicar, mas não tinha tempo pra isso. Quem mandou pegar algo que não lhe pertencia.
Torcendo as mãos, parou no meio de corredor que dava acesso aos quartos. Não sabia o que dizer e resolveu que o melhor era simplesmente falar a verdade.

– Lúcia. – chamou dando uma leve batida na porta.
– Diga. – Lúcia se virou para ela, e em sua mão direita estava a pedra triangular.

domingo, 7 de novembro de 2010

Capítulo Quatorze

Belo Horizonte, Cidade Jardim

– Estou morto – suspirou Antônio – Quantas peças ainda faltam?

– Poucas. A biblioteca, a sala de jantar íntima, os três banheiros sociais e os dois quartos de hóspedes.

– Só?! – Antônio riu – que semana.

– Isso sem quebrar nada. – Vivian salientou.
– Ainda bem. Depois daquela maldição de que qualquer peça quebrada iria restaurar todas as maldições, eu que não iria me arriscar.

– É verdade. Incrível como ela estava preparada. Como se tivesse adivinhado tudo o que mamãe pensava. Como se soubesse que viríamos aqui.

– Ou para se precaver, no caso de outra coisa ruim vir morar aqui.

– Não havia pensando nessa possibilidade.
– Podíamos mandar essas fotos para o Guiness.
– Pra que?

– Para colocar como a casa mais amaldiçoada do mundo. Nenhuma peça se salva. Estamos a uma semana limpando isso aqui.

– Por isso acho que ela vinha se preparando há muito tempo. Ninguém faria isso em uma noite.
– Talvez desde que ela ficou sabendo do desejo de Carlos se casar com Irina.

– Pode ser. Mas um mês realizando rituais diários, isso mataria qualquer pessoa.

– Como matou, Vivian. Imagino que naquela noite ela deve ter se excedido, talvez feito à maldição para a sua mãe e para o doutor Adriano. E por isso morreu logo em seguida ao seu filho.
– Não havia pensado sobre esse ponto de vista.

– De qualquer forma, nunca saberemos as reais intenções dela. Ao mesmo tempo em que repele estranhos com maldições, impedindo qualquer pessoa de morar aqui, parece atrair os que poderiam ter alguma ligação com ela.
– Mas não sobreviveu nenhum parente dela, para atrair alguém com laços familiares.

– Não digo laços de sangue, mas como o que você tem com ela. Você a conheceu criança, e a sua mãe lhe designou uma missão em relação a ela. E tem os herdeiros de Irina.

– Laços invisíveis. Incrível como um fato mexe com a vida de todos.

Vivian olhou para as paredes da casa. Sabia que nessa madrugada poucas peças estariam iluminadas, e que em mais dois dias tudo estaria terminado. Sua mãe não a questionava mais, nem lhe cobrava tanta pressa. Talvez nem ela imaginasse que madame Elvira iria exigir cuidado dos que resolvessem exterminar com sua maldade. Mas ainda faltava a parte mais importante da missão.

– O que me angustia Antônio – começou – é que não encontramos nada relacionado aos herdeiros. Minha mãe acreditava, e hoje eu também acredito, que eles correm risco de vida.
– Só que nenhuma maldição era destinada a eles. – Antônio completou seu pensamento. – Vamos ter calma. Ainda não completamos a limpeza. Ou sua mãe tinha lhe dado alguma indicação?

– Não. Nenhuma. Mas imaginava uma área nobre... embora as áreas relacionadas aos hóspedes tenham algum sentido.

– Abrigo para estranhos.

– Não, para inimigos. Um dos quartos, que eu não me lembro qual, era sempre destinado às pessoas que não eram bem-vindas por madame Elvira. Embora nenhuma dessas pessoas soubesse desse fato.

– E o que acontecia com elas?

– Não sei. Elas sempre iam embora no outro dia, sem tomar café da manhã.
– Como dizem os meus filhos: Sinistro.
– Não brinque, Antônio.

– Se não brincarmos, vamos enlouquecer. Às vezes acho que esse é o segredo: não levar a sério toda essa história de bruxaria. A nossa mente pode alimentar essa crença, tornando-a real. Daqui a pouco estaremos vendo coisas.

– Não creio nisso. Pois estaria transferindo tudo o que aconteceu com madame Cristina e doutor Adriano, para a minha mãe.

– Por que?

– Porque ela era a única que sabia. E minha mãe jamais faria mal a ninguém.

– Claro que não. Tia Catarina foi à pessoa mais bondosa que conheci.
– Então não subestime o poder de madame Elvira, Antônio. Isso pode custar nossas próprias vidas.

No domingo à tarde, Vivian decifrou os últimos códigos e decifrou suas maldições. Nenhuma referente a Irina ou seus herdeiros. Onde? Onde está? Olhou para Antônio e viu em seus olhos a esperança de terem terminado. Sabia que ele estava com saudade de casa, da sua família. Só que não podiam ir embora, apenas metade da missão havia sido feita.
Deitou na cama, fechou os olhos e esperou. Quando sua mãe a acordou, nenhuma luz entrava pela janela. Andando na ponta dos pés, Catarina levou Vivian pela porta, atravessaram o corredor e abriram a porta da sala. Caminharam até o jardim e olharam para a grande casa, que se encontrava escura, fechada e silenciosa.

Sendo puxada pela mão, Vivian se viu entrando na casa, apenas as suas sombras se movimentavam. Quando tentava falar, para perguntar o que estava fazendo ali, sua mãe colocava a mão nos próprios lábios, indicando silêncio.

Se dirigiram ao escritório do doutor Adriano. Catarina abriu a terceira gaveta e tirou de lá uma fita do Senhor do Bom Fim. Vivian também tinha uma, havia ganho de madame Cristina, quando ela e o marido haviam retornado de uma viagem a Bahia.

Catarina abriu a mão direita de Vivian e colocou a fita lá.


Quando o sol invadiu o quarto, Vivian abriu os olhos. Havia dormido além da conta. E pelo silêncio, Antônio também. Notou que havia algo em sua mão. Ao abrir, viu a fita do Senhor do Bom Fim. Levantou e guardou na primeira gaveta da única cômoda que havia no quarto. Se arrumou e foi tomar café da manhã.

Antônio estava na mesa da cozinha, lendo o jornal. Levantou os olhos e lhe sorriu.

– Bom dia prima. Quais os planos para hoje?

– Atender a corretora. Para assinar os papéis da compra da casa. – Pegou um pão e uma faca. Procurou pelo pote de margarina antes de falar novamente. - Depois tenho que pensar.
– Os herdeiros? – Antônio foi até a geladeira, pegou a margarina e a entregou para Vivian.

– Sim. Obrigada. – Vivian abriu o pote e com a faca começou a preencher o pão. - Deve existir, em algum lugar, alguma coisa relacionada a eles.

– E se ela não fez nada?

– Tenho certeza que ela fez. Irina lhe tirou a única coisa que realmente amava: seu filho Carlos.

– Olho por olho.

– Exatamente.


– Está gostando da casa, Vivian? – perguntou a corretora.

– Sim, Mariana. É uma casa maravilhosa.

– Realmente, ela é divina. Acho que mais bonita que ela, só uma outra que vendi ontem, no BonFim.

– BonFim? – Vivian arregalou os olhos.
– Sim. Aqui em Belo Horizonte, perto do centro, temos um bairro chamado BonFim.

– É verdade, eu já havia esquecido.

– Se a senhora tiver tempo, vale a pena visitá-lo. – Disse abrindo uma pasta marrom. - Bom, aqui estão os papéis, rubrique as primeiras páginas e assine na última.
– Certo.

Enquanto Viviam rubricava, sua mente funcionava a todo vapor. Terminada a parte burocrática, conversou mais algumas amenidades com a corretora e depois a acompanhou até a saída.
Entrou na casa dos empregados. Antônio assistia um filme antigo, que passava pela vigésima vez na televisão.

– Antônio, se arrume. Vamos sair.

– Nossa! O que houve?

– Acho que sei onde está a maldição dos herdeiros.

– E pelo jeito não está na casa.

– Não. Com certeza não está.

Vivian foi até o seu quarto, e encontrou a fita em cima da sua bolsa.

– Não precisava mãe. Já descobri. – disse em voz alta.


Vivian fechou a porta. Antônio já a aguardava dentro do carro. Abriu a porta e sentou-se ao seu lado. Fechou a porta e colocou o cinto sem dizer uma palavra. Antônio a aguarda, cheio de expectativa.

– Então, para onde vamos?

– Para o bairro BonFim.

– Bairro BonFim? Aquele perto do centro?

– Isso. Você já o conhecida? – Vivian olhou para Antônio que apenas levantou os ombros.

– Li sobre ele no jornal. O que vamos procurar lá?

– O cemitério do Bonfim.

domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 13

São Paulo, Morumbi

– Sinistro – Doca arregalou os olhos – elas são quase iguais!

– Me empresta um pouco a sua pedra. – João pediu.

Sem receio, Doca entregou. João caminhou até a mesa e as movimentou, até que elas pareceram se encaixar.

– Parecem peças de um quebra cabeça.

– E são. Olhe – João apontou para as pedras – falta uma peça para completar a figura.

– E com quem deve estar?
– Algo me diz que em Porto Alegre.

– Por que em Porto Alegre?

– Teoricamente, é o local onde mora a família de um tio meu.

– Você já viu ele com a pedra?

– Eu não o conheço.

– E por que você acha que está com ele?

– Porque a primeira está com você.
– Não entendi.

– Espere um pouco. – João foi até um armário e abriu uma gaveta, de onde tirou um envelope. – Você sabe ler?

– Claro que sei. – Doca respondeu ofendido. – Estou na quarta série, mermão.
– Desculpe. Minha mãe, antes de morrer, contratou uma agência de detetives para procurar seus irmãos. Um deles era ilegítimo, e morava no Rio de Janeiro.

– E aí? Ainda não entendi aonde eu entro?

– Ele se chamava Josias. Como o seu pai.
– Você acha que somos parentes?
– Primos. Mas preciso confirmar.

– Nós vamos fazer aquele exame que falam na TV?

– DNA? Não. Mas eu vou continuar com o meu plano, quando encontrei você na estrada, estava indo para o Rio de Janeiro, mais especificamente, no orfanato em que ele ficou.

– Irado. E o que vai acontecer se eu não for seu primo? Você vai me correr?
– Não, não vou. – afirmou, com convicção.


João limpou a sujeira que Doca havia feito. Ajeitou a cama para o menino dormir e repensou seus planos.

Na manhã seguinte, João reservou para a próxima semana passagens de ida e volta para o Rio de Janeiro. Iria esperar Doca melhorar, já que ele não podia ficar sozinho. Foram dias diferentes na vida de João. Foi ao cinema, comeu hambúrguer e ouviu histórias sobre o morro Porto Seco.
– Você não tinha medo?

– Quando a minha mãe estava viva, não. Bagão nunca havia se metido comigo, pois sabia que se tocasse em mim, ela abriria a boca. – Diante do olhar curioso de João, Doca explicou. – Meu pai contou todos os podres do Bagão para a minha mãe, como garantia de proteção. Ele era o único que sabia que o cara era um baita de um veado. Mas para chefão do tráfico, não caia bem.

– Mas quando sua mãe morreu...

– Ele achou que poderia se aproveitar de mim. Sua grande vingança. Mas ele se ferrou, pois agora ele não pega mais ninguém, nem homem ou mulher.
– Vou me lembrar disso.

– Não sou violento. Foi pra me defender.

– Não estou condenando, Doca. Muito pelo contrário – e abraçando o menino pela primeira vez – tenho orgulho de você. Mas agora esqueça essa história. Quero que você me dê o nome da sua escola. Vou pegar os papéis para você estudar aqui em São Paulo.

– Eu vou ficar aqui?

– Vai. Nunca mais você vai ter que se defender dos Bagãos da vida. - João não sabia a razão de estar fazendo aquela promessa. Talvez fosse a pedra, ou uma estranha certeza de que Doca era seu primo, ou quem sabe o simples desejo de não querer ficar sozinho.

– Gostou do nosso domingo?

– Muito legal aquele parque, João – olhou para o braço – quando eu estiver totalmente recuperado, quero voltar lá.

– Combinado. Agora tenho algo sério pra dizer.

– O que eu fiz?

– Você não fez nada. É que amanhã estou indo para o Rio de Janeiro. Vou pegar um avião cedo e a noite estou de volta.

– Vai ver se meu pai era o seu tio mesmo?
– Sim, e vou buscar os papéis para a tua transferência, assim podemos te matricular em uma escola aqui em São Paulo.

– E se eu não for seu primo?
– Você é.

– Como você sabe?

– Não sei. Mas isso não importa agora. Quero que você preste atenção: como você viu, ontem compramos várias besteiras no mercado, não é para você comer tudo.

– Sim, senhor.

– Vou deixar marcado na portaria para trazerem o seu café, almoço e lanche. E vou pedir para a Teresa trazer. Então, você só pode abrir a porta para a Teresa, certo?

– Certo.

– Então, não abra a porta para nenhum estranho. Nem saia do quarto. Combinado?

– Combinado.


O sol não havia nascido quando João levantou. Tomou um rápido café, pegou uma pequena bolsa e observou se Doca ainda dormia. O táxi o esperava na frente do Flat e João chegou exatamente uma hora antes do vôo no aeroporto.

Fazia anos que não ia ao Rio de Janeiro, a visão pela pequena janela despertou o desejo de tomar um banho de mar. Mas não tinha tempo pra isso. Pela primeira vez em sua vida, tinha alguém que dependia e esperava por ele.

Ouviu as histórias do taxista com impaciência. Nem o calçadão de Copacapana, ou a visão ao longe do Pão de Açúcar, atraiam a sua atenção. Ao identificar o local que buscava, sentiu a adrenalina correr pelo seu corpo. Parte da sua história estava ali. Pagou o motorista e se dirigiu rapidamente ao portão de entrada. Quando passou pela porta do orfanato, escutou o grito das crianças e viu uma irmã carmelita brincando com elas. Chegou até a recepção, onde uma senhora o atendeu.

– Bom dia. No que posso ajuda-lo?

– Bom dia. Estou procurando informações sobre um homem que passou parte da infância aqui. Seu nome é Josias.

– Josias do que?

– Apenas Josias. Ele não tinha registro nem sobrenome.
– Temos dois Josias aqui, qual a idade dele?

– Ele não está aqui. Inclusive já morreu.

– O senhor é louco?

– Não. Estou procurando informações sobre um tio meu. Seu nome era Josias e morou aqui durante um tempo.

– É complicado ajudar só com essas informações.
– Ele se tornou traficante no morro do Porto Seco.
– Você está falando do Josias traficante?
– Sim.

– Então você é jornalista?

– Não. Acho que sou sobrinho dele.

– Como assim, acha que é sobrinho dele? Josias não tinha ninguém, nem sobrenome.
– Vocês não sabem o nome da mãe dele?

– Não. O passado de Josias é desconhecido. Mas você é realmente parente dele?

– Conforme uma investigação de uma agência particular, tudo indica que sim.

– Bom, tanta gente já olhou a ficha dele, que mais um ou menos um não vai fazer diferença. Sabe, ele já havia sido esquecido por aqui, eu mesma, nem sabia da existência dele. Até matarem ele, dez anos atrás. Alguém disse que ele havia sido criado aqui e tudo o que é jornalista resolveu pesquisar a vida desse “ilustre desconhecido”.

A mulher foi até um armário e retirou uma pasta de papelão, num azul desbotado. Comum gesto, pediu que João a seguisse. Entraram em uma sala com duas mesas de madeira, cada uma com quatro cadeiras.

– Pode sentar em qualquer uma delas e olhar a vontade. – Disse enquanto entregava a pasta para João - Uma das irmãs colocou os recordes das notícias que saíram sobre o Josias. Quando terminar, basta me entregar ali no balcão. Ah, e não esqueça de colocar o seu nome completo na folha que está grudada na capa, é para o nosso controle.

João concordou com a cabeça, quando a mulher virou as costas, começou a manusear os documentos. Josias foi levado ao orfanato aos oito anos, por uma mulher que vivia no morro da Mangueira. Conforme essa mulher, uma vizinha havia lhe dado à criança ha dois anos atrás, quando estava morrendo. Não sabia o nome da mãe, apenas que a sua forma de falar não era carioca, e pelas roupas, era uma mulher da vida.

Josias viveu no orfanato até os dez anos, quando fugiu. Conforme os recortes de jornal, desde essa época ele vivia no Porto Seco. Menino revoltado, conquistou a confiança de um dos maiores ladrões da época. O aprendiz se tornou mestre, conseqüentemente chefe do morro, e inevitavelmente, do tráfico de drogas. Morreu tarde, para os padrões da bandidagem. Alguns apontavam Bagão como autor, outros diziam ser um traficante do morro vizinho.

Nenhuma notícia sobre a mãe. Seria ele realmente filho de Irina? Continuou a mexer nos papéis e encontrou um envelope, abriu e encontrou uma pequena carta:


“Meu menino
Sei que nunca irá me perdoar. Eu também não. Lhe desejo sorte.”

João olhou para os lados, ninguém o observava. Disfarçadamente, o guardou no bolso interno do casaco. Não encontrou mais nenhum papel interessante. Guardou tudo na pasta e começou a escrever o nome na folha de controle. Havia uns quinze nomes, alguns, de jornalistas que hoje eram famosos. Mas foi o primeiro nome que lhe chamou a atenção: Odete Eztufp, data da visita: 04 de junho de 1968.

domingo, 24 de outubro de 2010

Capítulo Doze

Curitiba, Cristo Rei

– Como? – perguntou Lúcia, com o sorriso sumindo de seus lábios.

– Você não é a amiga das meninas do 1004?

– Sou.

– Eu sou Odete, do 1303. – disse estendendo a mão enrugada – As meninas costumam ir lá no meu apartamento aos domingos, para tomar um chá. E me falaram muito de você.

– Prazer dona Odete. – disse apertando a mão da doce senhora. – Sou Lúcia sim. Desculpe, como sou nova ando meio assustada.

– Não precisa se desculpar – a senhora balançou a cabeça – e pode me chamar de Odete. O seu jeito assustado me lembra uma antiga colega de trabalho – sorriu – onde você está indo?

– Na padaria.

Odete deu uma pequena gargalhada. Nesse momento o elevador parou no térreo.

– Que pão você vai comprar?

– Cacetinho – Lúcia estranhou a pergunta.

– As meninas resolveram que você ia passar vergonha como elas, então. – a senhora sorriu outra vez – eu também estou indo comprar pão. Aqui é panificadora que chamam, e não padaria. E você vai comprar pão francês e não cacetinho.

– Pão francês? Lúcia arqueou as sobrancelhas.
– Sim. Se você pedir cacetinho a moça irá olhar para a sua cara sem entender. Vamos lá, enquanto caminhamos, lhe explico algumas diferenças lingüísticas.
– A senh...Odete – Lúcia se corrigiu ao perceber o olhar da sua vizinha – tu estás acostumada com os gaúchos?

– Sim. Morei um tempo lá, antes de vir pra cá. Mas não se assuste, Curitiba é uma cidade muito boa de morar – Odete abriu o portão que dava acesso à rua – Vamos?


No domingo, Lúcia acompanhou suas amigas até o apartamento de Odete para o famoso chá. As meninas contaram tudo o que fizeram durante a semana, fizeram Lúcia relatar as suas últimas semanas em Porto Alegre e a viagem. E depois ouviram Odete contar as suas histórias, de quanto era vendedora, manicure e prostituta. Sem nenhuma vergonha, ela revelava episódio com clientes e situações constrangedoras. Ao anoitecer, retornaram para o apartamento com a boca doendo de tanto rir.


Na manhã seguinte, Clarissa acompanhava as outras duas se arrumarem. Sempre foi muito ágil, e ainda não havia ajustado um horário para acordar sem atrapalhar e nem ficar esperando muito por Soraya.

Lúcia também era demorada, e ainda não havia calçado os sapatos. Olhando no relógio, Clarissa percebeu que faltavam quinze minutos para o ônibus da empresa passar. E ela não podia se atrasar. Chegando lá, teria que organizar sua pasta para depois ir até a Ópera de Arame, local onde iriam montar a festa de aniversário da Ambiental.

– Com que sapato você vai, Lúcia?

– Você?! Já virou paranaense, Clarissa? – brincou Lúcia.

– Essa ai mudou de sotaque rapidinho. – disse Soraya, terminando de engolir o café.

– Trabalho na área de relações públicas. Não posso vir para o Paraná e tratar todos por “Tu” se eles usam “Você” – respondeu furiosa – e diga logo o sapato que TU irás usar Lúcia, pois temos menos de quinze minutos.

– Me traga o preto, já que você vai buscar.

Clarissa foi até o quarto de Lúcia caminhando furiosamente. Abriu a porta do guarda-roupa e pegou o sapato na prateleira mais baixa. Quando fechou a porta, seus olhos foram atraídos pela pedra em cima da penteadeira. Olhando as tonalidades que ela refletia em contato com a luz, Clarissa, sem pensar, pegou a pedra triangular e colocou em seu bolso. Lúcia não iria notar, à noite ela colocaria no lugar. E se a pedra desse o efeito que ela imaginava, iria pedir para Lúcia emprestar, afinal, era um evento para a empresa que todas faziam parte.

No ônibus, enquanto Soraya apresentava Lúcia aos demais colegas. Clarissa imaginava o efeito que a pedra faria como enfeite na mesa da presidência. Apesar de terem contratado uma empresa de decoração, ela tinha certeza que sua pró-atividade iria render muitos pontos.
Quanto o ônibus chegou na empresa, elas se separaram. Soraya levou Lúcia até o seu novo setor, onde seriam colegas e Clarissa correu para suas atividades.


– Você vai estranhar um pouco – começou Soraya – o pessoal aqui é um pouco mais fechado, mas depois que se acostumam contigo, são todos muito legais. – Abriu uma porta onde dizia Recursos Humanos. – Venha, a sala das psicólogas é por aqui.

Entraram em um local muito arrumado, com arranjos de flores e mesas organizadas. Um perfume indicava que, definitivamente, aquele era um local feminino.

– Bom dia Heloísa. – disse Soraya – trouxe a nossa nova colega.
– Seja bem-vinda, Lúcia – Heloísa se aproximou e deu dois beijos nas faces de Lúcia – Adriana me falou muito bem de você. Estamos com muitas expectativas em relação ao seu projeto.

– Eu também. – Sorriu Lúcia. – E muito ansiosa para coloca-lo em prática.

– Mas antes, você deve conhecer a nossa empresa. E as pessoas com quem você irá trabalhar. Soraya mostre a mesa de Lúcia e depois faça um pequeno tour. Na próxima segunda, você irá participar da integração, onde assistirá um curso que conta à história da organização, seus processos, enfim, o que a faz funcionar. – Explicou Heloísa. –Mas esse pequeno passeio com Soraya podem lhe dar uma visão de onde o seu projeto irá funcionar.

– Venha Lúcia. – chamou Soraya – sua mesa fica aqui no canto, perto da janela.

Despediram-se com um sorriso. Lúcia ficou impressionada com o espaço que lhe foi destinado.
– Todos têm duas mesas. Essa primeira aqui é a pessoal, você pode colocar fotos, bugigangas, enfim, qualquer coisa, a outra é para fazermos reuniões em par. Embaixo da sua mesa pessoal tem um pequeno armário com gavetas, coloque a sua bolsa na maior e vamos caminhar.


Clarissa olhou para o relógio quando o carro parou, dez horas, haviam chegado cravados por causa do seu colega Jorge.

– Bom dia, pessoal – disse Marcelo, responsável pela empresa de decoração – Tem um grupo de turistas dentro do teatro e vamos ter que aguardar um pouco, mas vamos caminhando.
Clarissa observou o lugar, o teatro era todo em ferro e vidro, cercado por árvores, havia também um lago com cisnes nadando. Uma ponte, com um piso de grade, dava acesso ao local, e ela lamentou ter vindo com um sapato de salto fino. Lembrou de Júnior comentado que a Ópera parecia uma aranha gigante saindo da floresta para atacar os habitantes da cidade. Mas para ela, era a perfeita harmonia da arquitetura com a natureza.

– Você já conhecia a Ópera, Clarissa? – perguntou seu colega

– Não. Mas é linda!

– Você não viu nada. A noite, iluminada, é maravilhosa. Aposto que vocês não tem nada parecido em Porto Alegre.
– Não precisamos de luzes para tornar nossos locais maravilhosos, meu caro Jorge – com um olhar raivoso, completou – o pôr-do-sol do Guaíba faz toda a cidade ser maravilhosa.
– Bairrista. – Jorge riu. – Enquanto você tenta caminhar na ponte, eu vou lá na frente com o Marcelo ver o que está acontecendo.

Clarissa viu Jorge chegar com largas passadas na porta de entrada do teatro, enquanto ela estava no início da ponte, tentando caminhar e se equilibrar. Um gato avermelhado passou se encostando a suas pernas, fazendo com que tropeçasse.
– Ai. – gritou, ao sentir uma mão lhe segurar.

– Cuidado. – disse um homem de cabelos compridos, muito lisos, e pele morena – Você não deveria carregar fardos que não são seus.

Clarissa não conseguiu nem agradecer, o homem já havia lhe virado as costas e se afastado. Com a respiração suspensa e os olhos arregalados, pronunciou em voz alta:

- Fardos? Que fardo estou carregando? E de quem? – Mas ninguém lhe respondeu.

Estava no meio da ponte quando Jorge chegou.

– Vamos ter que esperar mais um pouco, no máximo cinco minutos, e o pessoal sai de lá. Ai o teatro é só nosso. – Olhando para o lago completou – Enquanto isso, podemos olhar os habitantes da água, tem peixes, tartarugas...hei, olhe aquele cisne.
Clarissa olhou para a água marrom. Cansada de tentar caminhar na ponte observou os desenhos da grade de proteção, uma mistura de arcos e triângulos que se interligavam, sem mais pensar, utilizou os braços para impulsionar o corpo e se sentou nela. Enrolou os pés em uma das pernas do triângulo e ficou observando o público. Olhando para a frente, lembrou a frase do homem que havia lhe apoiado e imediatamente, a pedra de Lúcia veio-lhe a mente. Instintivamente, abriu a bolsa e a pegou.

Quando a encontraram na barraca de artigos místicos da Redenção, ela não havia lhe chamado a atenção. Renata que havia incomodado a todas, afirmando que Lúcia iria se apaixonar pela pedra. Agora, ela lhe distraía, atraindo o seu olhar para os reflexos que a luz do sol provocavam naquele objeto.

Nesse momento, um grupo de jovens saiu correndo do teatro. O primeiro do grupo, olhou para trás, verificando sua vantagem em relação aos outros quando se desequilibrou. Ao tentar se apoiar na grade, que também servia de corrimão, empurrou Clarissa.

domingo, 17 de outubro de 2010

Capítulo Onze

Belo Horizonte, Cidade Jardim

– Meu Deus – exclamou Antônio – a mulher era realmente má.

– Madame Elvira? Você ainda não viu nada. – espreguiçou-se Vivian – Amanhã vamos remover os armários na cozinha. – disse desligando o notebook.

– Na cozinha? Mas porque Vivian?

– Quero descobrir que maldição à velha bruxa jogou na minha mãe para ela morrer daquele jeito.

– Você é quem sabe. Aonde iremos dormir?

– Na casa dos empregados.

– Você está brincando? Com a quantidade de quartos confortáveis que tem nessa casa?

– Você quer descobrir a razão de ninguém morar aqui?

– Você acha que ela jogou alguma praga?

– Depois do que acabamos de ler, você tem coragem de dormir aqui?

– Pensando por esse prisma... não.

Vivian riu. Toda vez que Antônio começava a falar difícil era porque as suas pernas tremiam. Desligou todas as luzes, deixando apenas as da rua acessa. Ao abrir a porta da casa dos empregados, velhas lembranças tomaram conta do seu coração. Caminhou até a cozinha e encostada em uma das mesas, colocou os braços em sua volta. “Mãe que falta você me faz.”

– Onde fica o banheiro? – gritou Antônio.

– Você está na sala? – respondeu enquanto enxugava as lágrimas.

– Sim.

– Está vendo o corredor?

– Estou.

– Primeira porta a direita.


Seguiu em direção a sala, passou a mão pelas paredes, com um suspiro, caminhou em direção ao corredor e se dirigiu a última porta. Ao abrir, estava tudo lá. Sentiu-se com dez anos, fugindo do banho enquanto a mãe ainda atendia os patrões.

– Onde irei dormir?

– No quarto do Miguel.

– Miguel?

– O antigo motorista da família.

– Vocês moravam com um homem aqui dentro?

– Miguel tinha mais de sessenta anos e era um senhor adorável. Doutor Adriano tinha pena dele. Só o chamava para trajetos curtos. Morreu um ano depois de seu Carlos e Madame Elvira.
– Ele não chegou a se mudar então.

– Não. – fazendo um leve gesto de negação com a cabeça, para afastar os pensamentos, Vivian mudou de assunto – Pegue as nossas malas no carro, por favor? Na preta estão lençóis e toalhas limpas. Assim podemos tomar um banho e arrumar nossas camas.


Vivian tomou um banho quente e demorado, por um momento imaginou a mãe lhe esperando, para trançar os longos cabelos. Mas nem a sua mãe, nem os cabelos estavam mais lá. Colocou a longa camisola e um roupão felpudo. Quando saiu do banheiro, sentiu um cheiro gostoso vindo da cozinha. Sorriu, antecipando o prazer de uma refeição feita por Antônio, que era um excelente cozinheiro.

Foram dormir cedo. Ambos estavam cansados da movimentação. Após se aconchegar nas cobertas, Vivian sentiu o cheiro de sua mãe, fechou os olhos e dormiu com ela em seus pensamentos.

Um barulho forte ecoava da casa. Vivian sentiu que braços quentes a protegiam. O que estava acontecendo? Notou que seus pés estavam sem as meias e sua camisola não era mais tão longa e quente. Abriu os olhos e encontrou os de sua mãe. Observou o seu rosto, emoldurado pelos cabelos pretos soltos, sua boca estava cerrada e a testa franzida. Vivian olhou para as suas próprias mãos. Tinha cinco anos outra vez.

– Venha. – disse a mãe estendendo a mão – Você precisa ver isso.

Vivian estendeu a mão e foi puxada para fora da cama. Catarina a levou até a janela e se abaixando, puxou de leve as últimas persianas.

– Olhe!

A casa estava toda iluminada, as venezianas das janelas abriam e fechavam, batendo com força nas paredes.

– Não entendo. Eles não estão em casa mamãe! Por que você não fechou as janelas e apagou as luzes – e apontando para a casa – ela está toda iluminada.

– Não está querida. Olhe para a janela do canto esquerdo.

– A janela do quarto de madame Elvira? – Vivian olhou novamente – É a única janela fechada.

– Sim, a janela do quarto que você limpou. É você que irá libertar essa casa, Vivian. Não esqueça disso, nem quando se sentir cansada. Você tem uma missão e não pode abandona-la. – Catarina se levantou e pegou Vivian no colo – Agora, volte para a cama. Você terá um dia agitado amanhã.
Com cuidado, Catarina acomodou Vivian no lado direito da cama e colocou um urso em seu travesseiro. Cantando músicas antigas, mexeu nos cabelos da menina até que essa pegasse no sono. A única coisa que se lembrava é da mãe lhe dizendo que a amava.


A forte luz do sol acordou Vivian, que continuava deitada do lado direito da cama com um urso a lhe fazer companhia. Instintivamente tocou na camisola e notou que era a mesma grande e felpuda. Olhou para as mãos, elas tinham sessenta anos outra vez. E suas meias estavam, em seus pés. Mas a sua mãe também estivera.

Levantou e olhou para a janela, as persianas estavam levantadas. Eram seis e meia da manhã, hora em que sua mãe deixava o sol entrar para ela acordar e ir ao colégio.

– Não se preocupe, mãe. Não esqueci da minha missão.

Vivian sabia que tinha que ser rápida. Não tinha muito tempo para encontrar os herdeiros da maldição. Mas hoje ela iria cuidar da casa, começando pela cozinha.


Os armários em madeira escura estavam por toda a cozinha e eram pesados. Vivian e Antônio passaram o dia retirando louças de dentro deles, desmontando armários e atirando o líquido amarelo nas paredes e nada. Só faltava a peça que servia de depósito de alimentos. Não havia nada lá. Apenas a madeira das prateleiras. Antônio começou a mexer, quando notou que, em um dos lados, elas eram mais frouxas. Começou retirar uma a uma, até a parede se mostrar por inteiro.

– Aqui está ela. – disse sem olhar para Vivian.

Sem responder, Vivian atirou o líquido amarelo e as palavras apareceram:

“Skas duzlios le bys a humis D l nuzPas a tulil”

Vivian repetiu o procedimento do dia anterior com mais dificuldade. Suas mãos tremiam ao ver os símbolos que marcaram parte da vida de sua mãe. Demorou o dobro do tempo para decifra-los. Cada significado encontrado era uma punhalada no seu coração.
– Negra Maldita seu corpo irá pagar por suas palavras de traição – Vivian suspirou – isso explica tudo Antônio.

– A cegueira da sua mãe não foi algo natural?

– Não, meu primo. Quando minha mãe avisou madame Cristina que eles deveriam se mudar, seu cabelo branqueou.

– Por isso a tia Catarina não comentou nada quando o doutor Adriano começou a definhar?

– A princípio ela não sabia. Quando nasceu o Jonas, o caçula, ela teve certeza. Mas teve medo. Eu era uma adolescente e ela temia o que podia acontecer com ela. Mas madame Cristina também percebeu e parou de engravidar. Infelizmente, era tarde demais para doutor Adriano.
– Então a perda nos movimentos da mão esquerda de sua mãe foi natural?

– Não. Quando os médicos do doutor Adriano anunciaram sua morte, madame Cristina começou a providenciar o enterro dele em Recife mesmo, uma hora depois dela fazer o acerto com a funerária, Cezar, o primogênito, ficou com quarenta graus de febre. Minha mãe não se agüentou e pediu para madame Cristina enterra-lo em Belo Horizonte, no jazigo comprado por madame Elvira. Mesmo com lágrimas, madame Cristina o fez, depois de tudo acertado, a febre do menino foi embora, mas minha mãe não conseguia mais mexer com a mão esquerda.

– E foi assim que eu acabei nascendo perto de vocês. – Antônio brincou, tentando aliviar a atmosfera pesada.

– Sim. Mamãe não conseguia mais realizar as tarefas domésticas, assim madame a colocou como uma administradora da casa e a encarregou de contratar outra pessoal. Mamãe chamou tia Madalena, que um ano depois se casava com o jardineiro Elias e dois anos depois dava a luz a um menino chamado Antônio. – concluiu com um leve sorriso.

– Esse seu formoso assistente. – Antônio gracejou, sentindo-se satisfeito por desfazer um pouco da tensão de Vivian.

– É verdade. Obrigada, Antônio. Sei que é complicado deixar a família e os negócios pra trás, mas sem você eu não conseguiria.

– Não diga bobagens. Você é minha família também. Além do mais, Miriam pode cuidar da loja.

Encerrados os trabalhos daquele dia. Vivian deitou a cabeça no travesseiro. “Estou muito velha pra isso” suspirou. O sono logo veio, assim como a presença forte e quente de sua mãe.

– Acorde e veja – ela lhe disse.

Novamente a casa estava toda iluminada, com as janelas batendo. Exceto o quarto de madame Elvira e a cozinha.

– Amanhã será mais fácil mamãe. E o trabalho será mais rápido.

– Você não precisa ter cuidado com os bens materiais. Seu tempo é pouco. Várias vidas dependem disso.

Vivian com o olhar fixo na casa, apenas concordou com a cabeça. Apesar do corpo de criança, sua cabeça permanecia com sessenta anos, e o seu conhecimento de vida dizia que nesse ponto sua mãe estava errada. Se quebrasse qualquer coisa antes de libertar todas as peças, daria mais força ao espírito e as maldições de madame Elvira.


Quando amanheceu, Vivian despertou com um sentimento de urgência. Desejou ter os quarenta anos de Antônio, mas agradeceu a Deus poder contar com sua ajuda. Foi até a janela onde se via toda à parte de trás da casa.

“O dia terá que ser definitivamente longo” pensou.

domingo, 10 de outubro de 2010

Capítulo 10

São Paulo, Via Dutra

João não pensou. Simplesmente virou toda a direção para a direita. Ainda teve tempo de ver um par de olhos brilhantes antes de frear com força. Sentiu o corpo ir para frente e ser empurrado de volta ao acento pelo cinto de segurança. “Que merda. Só me faltava isso” pensou , no momento em que um grande caminhão passou buzinando. Mais por reflexo do que por preocupação, olhou para a pista procurando um corpo. Nada. “Estou vendo coisas” resmungou ao notar um corpo estendido no acostamento, a poucos metros do seu próprio carro.

Doca jamais conseguiria explicar o que aconteceu, lembrava-se apenas de que estava pegando a sua camiseta quando viu os faróis em sua direção. Virou a cabeça para a esquerda e viu um gato de olhos verdes. Sem pensar muito, foi em sua direção, sentiu uma pequena batida e agora, quando abria os olhos, via os mesmos faróis e o chão. “Será que eu morri?”

– Puta que pariu. Meu carro! – resmungou um homem alto, de camisa pólo azul, calças sociais, olhando para a lataria do carro esporte.

– Qual é, mermão?! Quem deveria estar falando palavrão sou eu, estendido aqui no chão.
– O que você estava fazendo no meio de uma pista... de uma pista de BR, seu imbecil? – pela primeira vez João olhou realmente em direção a voz. O que viu foi um menino pequeno, sozinho, caído no chão com o braço sangrando.

Quando virou a direção, João acreditava piamente estar se livrando do louco da rodovia e deixando a responsabilidade para o caminhoneiro. Olhou em volta. Não havia nenhum adulto por perto, nem testemunha. Com a velocidade que o caminhão passou, com certeza não havia anotado a sua placa. Por que não seguir viagem e deixar o garoto ali, sozinho?

Doca estava com medo. Suas costas doíam, aliás, tudo doía. Havia raspado um dos braços e batido a cabeça. A bolsa de sua mãe estava aberta com tudo jogado na volta. Sua sacola com roupas estava no meio do mato. Pensou em levantar, mas resolveu esperar o homem que olhava ir embora.

João começou a caminhar lentamente em direção ao garoto. “Não posso ser tão covarde. Pego ele, largo em um hospital público e deixo uma grana para ele pegar um táxi. Tudo resolvido”. Olhou embaixo do pneu para ver se tinha atropelado o gato também, mas não havia nada. Quando levantou a cabeça viu uma conhecida pedra triangular no chão. Instintivamente, voltou até o carro e pegou o seu casaco. A que estava o chão era outra.

“Impossível, é muita coincidência”. Um trovão iluminou o céu e sem pensar, João começou a recolher as coisas do menino.

– Hei, não mexe ai não. – reclamou Doca – Isso é meu e nenhum 171 vai levar.
– Vou levar sim, essas coisas e você até um hospital. – gritou João – Você tem idéia do que fez? Tem?

– Desculpa. Eu me distraí com os aviões.

– Da próxima vez vá até o aeroporto para se distrair com eles e não no meio da Via Dutra. – suspirou – Você consegue se levantar sozinho?

Doca tentou se mexer, mas não conseguiu ter força suficiente.
– Acho que estou com câimbra na perna direita. Não consigo mexer sem sentir dor.

– Tudo bem. Não se mexa. Além dessa bolsa, você tinha mais alguma coisa?

– Uma sacola do Flamengo com as minhas roupas.
João foi até o mato próximo ao acostamento e logo encontrou.

– Essa mochila?

– Sim.

João recolheu tudo e colocou no banco da frente. Levantou o seu banco e abriu bem a porta. Foi até Doca e sem uma palavra, o pegou no colo. Caminhou rapidamente até o carro e o deitou no banco de trás.

– Vamos para um hospital. Procure não se mexer, ok?

– Ok. – respondeu Doca fechando os olhos. O carro tinha um cheiro bom e aquele banco era mais confortável que sua própria cama.

Se fosse honesto, iria admitir que nunca havia tido uma cama de verdade. Sua mãe ia conseguir uma em seu novo emprego. Mas Deus não quis.
– Como você se chama? – João o trouxe para a realidade.

– Hein?!

– Seu nome, qual o seu nome?

– Eduardo. Mas todos me chamam de Doca.

– Muito bem, Doca. Eu me chamo João. – olhando Doca pelo retrovisor perguntou - E os seus pais?

– Não tenho pais. Estou sozinho.

– Você fala chiado. É do Rio?

– Sou.

– E como você chegou até aqui?

– Pegando carona, caminhando...

– Nossa... você deveria estar desesperado!

– Estava.

– Você veio caminhando?

– Quando não conseguia carona...

Doca emudeceu e João resolveu prestar atenção no trânsito. Sem saber a razão resolveu levar o garoto para um hospital no Morumbi. Sabia que ia ficar com ele em sua casa. Nunca havia acreditado em coincidências, mas desta vez, o destino parecia estar lhe pregando uma peça.
Conforme andavam, as ruas se tornavam mais iluminadas, prédios mais altos surgiam. “Estou entrando em outro mundo” pensou Doca, enquanto lia o nome da rua: Avenida Albert Einstein.
João estacionou o carro em um prédio grande, com uma entrada envidraçada.

– Espere um pouco. – disse antes de sair.

Logo depois, João apareceu com um rapaz todo de branco que o retirou com cuidado do carro e o colocou na maca.

– O senhor não deveria ter removido ele da estrada – recriminou o mesmo rapaz – se ele sofreu algum dano mais sério na coluna, isso pode ter sido fatal.

– Como ele estava sentindo câimbra na perna, achei que não havia afetado a coluna. – disse João levantando os ombros.

– O Senhor é médico?

– Não, e você é enfermeiro, não?

Na entrada, Doca descobriu o lugar onde estava: Hospital Albert Einstein. Enquanto lia o letreiro, a maca foi em uma direção e João em outra. “Minhas coisas” foi à última coisa que Doca pensou antes de entrar em uma sala gelada.

– Boa noite, Senhor – sorriu a recepcionista – Enquanto o menino é levado para o raio X, pode preencher essa ficha?

– Sinto muito, mas sei apenas o primeiro nome do menino: Eduardo.

– Mas.. quem vai pagar o atendimento?

– Acredito que isso não seja uma preocupação, quando se trata do filho de Julios Galdos?

– Não, com certeza não, senhor – nervosa a moça guardou a ficha – Vamos esperar o menino sair dos exames para pegar os seus dados.

João saiu e foi sentar na sala de espera. Pelo menos isso o seu pai havia deixado. Atendimento vitalício após polpudas doações. Para seu alívio, pelo menos em um lugar, o seu nome ainda tinha poder.

Uma hora depois, Doca apareceu com o braço esquerdo enfaixado, alguns curativos no rosto e nas pernas. Havia perdido um dos seus chinelos e por isso caminhava puxando uma das pernas.
– Tudo bem? – perguntou para o médico que o trazia.

– Tudo em ordem com o rapazinho aqui. Ele teve uma luxação no braço esquerdo, mas em duas semanas estará pronto para uma nova aventura.

– Menos radical, eu espero. – disse João

– Com certeza, não é Doca?

– Sim, Dr. Luís. – pela primeira vez Doca sorriu – Muito obrigado.

– Nessa sacola – o médico apontou para o pequeno embrulho que Doca carregava com cuidado – estão os remédios que ele deve tomar. Aqui está a receita. – entregou na mão de João para que ele pudesse ver – esses dois primeiros ele deve tomar de oito em oito horas na primeira semana. Na segunda, muda para esse terceiro que é de doze em doze.

– Certo.

Doca prestou a atenção. Sabia que João iria larga-lo na primeira esquina. Mas não se importava. Já estava em São Paulo e agora podia começar a cuidar de sua própria vida.

– Obrigada, Doutor. – João apertou a mão do médico. – Agora tenho que levar esse garoto para o interrogatório da recepcionista.

– Boa sorte e cuide-se, Doca. Não quero ver você aqui tão cedo – piscou – a menos que você sinta dor nesse braço.


Despediram-se do médico e caminharam em silêncio até a recepção. A moça olhou para as roupas de Doca com um misto de pena e nojo, mas não ousou falar nada na presença de João.
– Muito bem. Qual o seu nome completo? – ela começou

– Eduardo Oliveira.

– Nome da sua mãe?
– Jussara Oliveira.

– Do seu pai?

– Josias.

– Oliveira?

– Não. Só Josias.

– Qual o sobrenome do seu pai?

– Ele não tem. – a recepcionista arregalou os olhos – ele não era registrado. – explicou com um olhar resignado.

Josias é morador da favela Porto Seco, no Rio de Janeiro. Sua busca foi extremamente difícil, pois ele não foi registrado. Andou por várias casas, seu último paradeiro antes da favela, foi um orfanato de irmãs carmelitas. Vive sozinho e é traficante de drogas.”

As palavras escritas no relatório da agência de detetives surgiram como um raio na mente de João. Era mais do que coincidência. Como dizia a sua mãe “algo grandioso iria acontecer”.

– Qual a sua idade? – a recepcionista continuava com a sua bateria de perguntas

– 10.

– Onde estão os seus pais?

– Mortos. – Doca respondeu com uma naturalidade que fez a recepcionista pigarrear antes da próxima pergunta.

– E onde você mora?

Doca pensou. Não tinha mais endereço. Mas ela não precisava saber, provavelmente nunca mais se veriam.

– Porto Seco.
– Onde é Porto Seco?

– No Rio de Janeiro.

– E a rua, o número?
– Quadra 12, barraco 15.

– Barraco? – a moça estava cada vez mais surpresa.

– Coloca o meu endereço – disse João – ele vai para a minha casa mesmo.

– Vai?

– Vou? Perguntaram Doca e a recepcionista.

– Vai. Você não pode encerrar isso? Ele já foi atendido, o Doutor Luís já deve ter uma ficha dele. Qualquer coisa, vocês ligam para esse número – estendeu um cartão.

– Certo. – ela respondeu, grampeando o cartão junto à ficha – Vocês estão cansados. Podem ir.

– Eu vou mesmo para a sua casa? Perguntou Doca a caminho do carro.

– Vai. – respondeu João, enquanto procurava a chave no bolso da calça. Apertou um botão e com um barulho, as portas destravaram – Agora você pode sentar. Entre no lado do caroneiro.
Doca correu para o outro lado. Quando abriu a porta, viu João colocar suas coisas no banco traseiro.

– Não esqueça de colocar o cinto. - João ligou o carro, com os olhos no retrovisor, colocou o carro lentamente em movimento.

Doca viu João pegar a carteira e entregar uma nota para o rapaz que liberava a saída dos carros. Ao sair do estacionamento, dobraram a direita. Conforme passavam pelas ruas, era possível observar as pessoas com seus passos apresados, ou esperando em paradas de ônibus. Prédios iluminavam a cidade como se fosse dia.

– É nessa rua. – Avisou João, trazendo Doca de volta a realidade.

Doca começou a procurar o nome, para saber onde se encontrava. Avenida Giovanni Gronchi informava a placa azul. Em frente a um prédio, onde se lia The Residence Flat, João apertou um botão em uma pequena caixa preta e um grande portão se abriu. Chegaram ao sub-solo, onde João estacionou o seu carro.

– Você mora aqui?

– Está impressionado? Se você visse a casa da família então. – sorriu João.

– É porque você não conheceu a casa da minha família.

João o encaminhou até os elevadores e subiram até o décimo terceiro andar. Ao abrir a porta. Doca se deparou com um lugar que misturava luxo e escuridão. Sua mãe sempre dizia que os ricos não sabiam iluminar suas vidas. Doca sempre a contrariava, dizendo que um dia ela seria muito rica e a sua casa, a mais iluminada de todas.

Enquanto Doca tomava banho, João separou uma roupa limpa para o menino e pediu um lanche. Quando entrou na sala, Doca se deparou com um prato de massa e refrigerante. Por um momento, pensou na razão de não sentir medo daquele homem. Mas algo lhe dizia que podia confiar naquele engomado.

– Então, como está?

– Delicioso. – respondeu Doca de boca cheia, observando João comer uma comida esquisita. – Isso é bom?

– Isso é sushi. Outro dia você experimenta. Já viveu aventuras demais para um único dia.

– Onde eu vou dormir?

– O sofá vira uma cama. É nele que você vai dormir.

– Tá bom.

– Não se preocupe. Ele é confortável.

– Não estou nem um pouco preocupado. – Doca deu de ombros. – Imagino que ele dê de dez a zero na minha ex-cama.

– O que a sua mãe fazia?

– Limpava a casa de gente cheia dos contos como você.

– E o seu pai?

– Fazia dois oito um. – respondeu enviando outra garfada de massa na boca.
– Dois oito o que?

– Ele era traficante – terminou de engolir e completou – dos bons, viveu até os cinqüenta, coisa que neguinho nenhum consegue. Mas um língua nervosa acabou com ele.

– Língua nervosa? Sei...

– Um dedo-duro. Depois que mataram o meu pai, ele saiu no pinote, e apareceu morto logo depois.

– Me diz uma coisa Doca. Onde você conseguiu aquela pedra triangular?

– É isso que você quer? – Doca levantou num saldo, derrubando molho no piso. – Ela é minha, você não vai tira-la de mim?

– Calma rapaz. – João disse enquanto se levantava lentamente e pegava a bolsa que Doca carregava. Atirou para ele que pegou e abriu ligeiro, derrubando a bolsa enquanto pegava a pedra com a mão boa. – O que você diria – continuou, enquanto pegava o seu próprio casaco e colocava a mão no bolso – se eu te dissesse que tenho outra parecida? – completou enquanto mostrava a pedra triangular em sua mão.