domingo, 29 de agosto de 2010

Capítulo Cinco

Porto Alegre

– Lúcia, estive pensando... – começou Clarissa.

– Senti. – respondeu a outra.

– Ah... como assim, sentiu? – Clarissa arregalou os olhos.

– Senti o cheiro de queimado.

– É sério, Lúcia. – Esbravejou Clarissa. – Você leu os classificados no último domingo?

– Não. – Lúcia desviou os olhos, evitando admitir para colega que não possuía três reais para comprar o jornal dominical.

– Pois devia, se quer sair dessa vida. – Suspirou enquanto mexia na bolsa. – O que seria de você sem mim. Encontrei isso pra gente.

– “Vaga para formandos em Psicologia em uma grande empresa” – Lúcia leu em voz alta.

– Fala baixo, toupeira – disse Renata que entrava na sala – A megera e o Júnior já estão chegando e eu escutei a tua voz dizendo vaga lá da rua.

– Mas é em Curitiba! – exclamou Lúcia ignorando Renata – Não tenho como ir pra lá, Clarissa.

– Claro que tem. Até porque vamos juntas. Eu também vou me escrever.

– No que vocês vão escrever? – perguntou Renata

– Em uma vaga para formandos em psicologia – respondeu Clarissa – eles não exigem experiência, apenas que seja formando.

– Mas isso é ótimo pra vocês. Qual é a tua dúvida, Lúcia? – disse Renata encarando a colega – Vocês quase se matam estudando e não trabalham na área, tu achas que vai conseguir alguma coisa aqui? Trabalhando em uma consultoria? É uma chance de ouro.

– Para agarrar com as duas mãos. – completou Clarissa.

– Eu concordo com vocês. Muitas vezes penso que diabos faço indo todo dia para aquela faculdade trabalhando em uma área completamente diferente. – Olhou para as unhas antes de voltar a encarar as colegas. – Mas eu preciso ajudar no sustento da casa. E por pior que seja o trabalho, o salário é razoável e eu preciso desse dinheiro.

– Mas vamos ganhar o dobro lá. – disse Clarissa – Você abre uma conta pra tua mãe e transfere metade do dinheiro pra ela. E nós dividimos um apartamento. Aposto que ela vai ser a primeira a te incentivar.

– Ter o meu dinheiro sem ver a minha cara? Acho que ela vai amar. – Lúcia sorriu tristemente.


Joana passava a mãos pelos cabeços ruivos. Os olhos verdes já não possuíam o brilho da juventude, mas eram muito mais espertos. Só que, naquele dia, não sabia o que lhe atormentava. Torceu as mãos e lembrou do pai. Tinha aquela mania desde pequena e o pai dizia que ela era igual à avó: na aparência e nos gestos. Não se lembrava dessa avó, uma vez, virá a foto dela no jornal, no momento do seu falecimento. Seu pai ficou muito triste e se trancou no quarto por dias. Quando indagado do porque de não ir no enterro, respondeu que não podia, não havia dado o neto homem que Dona Irina desejava.

Por essa razão, ele não olhou para Lúcia quando soube que era uma menina. Já havia desaprovado o seu casamento com Pedro, um auxiliar de padeiro que trabalhava próximo a sua casa. Só que ninguém manda no coração, Joana se casou cedo para desgosto do pai. Silvio morreu de câncer quando Lúcia tinha dez anos, e não conheceu Ricardo, o neto homem que tanto havia desejado. Culpa do cigarro.

Depois, foi a vez de Pedro morrer em um incêndio. “Quanta tragédia.” Pensou Joana. “E qual a razão de começar a pensar em tudo isso?”. Quando terminou a frase, estava na frente do quarto de Lúcia. Entrou e foi até a cômoda, onde estava a pedra triangular. Segurou-a com a mão direita. Ela não lhe era estranha. Parecia que já a tinha visto uma vez, numa imagem que não sabia se era real ou imaginação sua.

Era muito pequena e lembrava de sua mãe sentada em uma cadeira, se balançando e grudada na sua barriga, havia uma pedra com reflexos amarelos e rosas. Como aquela que segurava agora. “Não! Minha mente já está criando coisas. Seria muita coincidência.” Balançado a cabeça, Joana largou a pedra de volta no seu lugar e foi arrumar a casa.


Lúcia olhava para o site. “Mal não há em me inscrever. Isso não é garantia de que vão me chamar”.

– E se nos chamarem, Clarissa? Ainda temos um semestre e meio?

– Falei com a coordenadora. Vamos para a Puc de lá e problema resolvido. Inclusive a questão do estágio. O curso é o mesmo, e as disciplinas também. Não teremos nenhum problema com a transferência e eles ainda nos darão uma carta de recomendação.

Sem mais pensar, Lúcia informou todos os dados. A sorte estava lançada. Voltando a realidade, pegou algumas fichas e começou a digitar, tinha uma hora para fazer o serviço de duas, mas a culpa era sua, por ser tão indecisa.

– Lúcia. Já terminou de digitar os cadastros dos funcionários do novo cliente?

– Ainda não, Júnior.

– Assim não dá. Por acaso estava fazendo trabalho para aquela porcaria de curso?

– Não, não estava. – suspirou – Não estou bem hoje, ta legal?! - mentiu

– E eu com isso – gritou Júnior – Você está me atrasando!

– O que está acontecendo aqui? – perguntou a gerente

Imediatamente todas ficaram eretas em suas cadeiras. As outras quatro moças mal respiravam para não serem notadas.

– O problema é que Lúcia está atrasada com a digitação dos cadastros e eu preciso desses dados para amanhã de manhã.

– E porque a Lúcia está atrasada? – A gerente questionou Júnior, ignorando a presença de Lúcia.

– Conforme ela, não está se sentindo bem.

– Aqui não é lugar para não se sentir bem. Senhorita Lúcia – pela primeira vez a mulher a olhou – trate de se sentir bem e só sair daqui quando terminar o cadastro. Sem horas extras é claro, já que o atraso é culpa sua – a mulher já ia saindo quando disse uma última frase – E sem erros.

– Cretino – Renata murmurou quando a gerente já tinha voltado para a sua sala.

– Eu? – Reclamou Júnior. – Vocês ficam fofocando besteiras e atrasando o meu trabalho e eu sou o cretino.

– Cretino e desleal. Tu sabes que a gente sempre se ajuda. Inclusive já te ajudamos. Mas lembre-se: pra ti, nunca mais. Lúcia, me passe alguns cadastros, já terminei a minha parte por hoje e estava adiantando coisas da próxima semana – e com o dedo em riste sentenciou – e se você abrir a boca, a gerente Marlene vai saber quem fez a análise do posto de combustível semana passada, enquanto você estudava para a sua prova de estatística.

Júnior sentou calado. Olhando com ódio para Lúcia. As seis horas todos os formulários estavam sobre a mesa do rapaz, que não encarava nenhuma das moças. Desde aquela noite, Lúcia passou a rezar, com a pedra embaixo do seu travesseiro, para que lhe chamassem na vaga de Curitiba.


– Me ligaram – sussurrou Clarissa em seu ouvido – e pra Soraya também. Fique atenda ao teu celular.

– A Soraya também se inscreveu?

– Eles abriram vaga para estudantes de direito também. Tentamos convencer a Ane e a Renata. Mas sabe com é, a Renata está noiva e a Ane é uma eterna apaixonada pelo Júnior. Só vai sair daqui, quando ele também for.

Lúcia suspirou, até o incidente dos cadastros, ela também era assim, mas ele havia sido tão sujo. E se antes ele não reparava nela, agora a ignorava por completo. Nunca mais atrasou nada que fosse pra ele, mas Júnior a culpou pela reprimenda de Ane, embora essa não tenha cumprido o prometido e, uma semana depois, já o estava ajudando.

No final da tarde, o telefone de Lúcia tocou. Aproveitando que a gerente estava em reunião, saiu do escritório e agendou a entrevista. Como o local era perto, marcou no horário de almoço. Foi uma conversa de aproximadamente meia-hora, com uma psicóloga e uma representante da área de recursos humanos. Lúcia não tinha experiência, mas apresentou sua idéia para o trabalho de conclusão, o que entusiasmou as entrevistadoras, que afirmaram estarem procurando um projeto como aquele.

Foi com alegria que voltou ao escritório e recebeu um sanduíche com suco de Ane.

– Como foi? – perguntou a colega
– Acho que bem.

– Quando sai o resultado?

– Na sexta.

Quando sexta chegou, nenhuma das três paravam quietas e as outras duas começaram a sentir a mesma ansiedade.

– O que está acontecendo aqui? - perguntou Júnior – O Brad Pitt virá nos visitar e ninguém me disse nada?

Nesse momento, o celular de Soraya tocou, e ela foi para o banheiro. Quinze minutos depois, ela se dirigia para a sala da gerente. Clarissa e Lúcia trocaram um olhar.

– Ei, eu estou falando com vocês. Lúcia, você pode me responder?

– Há, vejo que depois de várias semanas, tu lembrastes do meu nome?

– Para de bobagem. Me diz o que aconteceu com a Soraya?

– O que aconteceu – disse a própria Soraya saindo da sala da gerente – é que estou indo embora. Acabei de dar o meu aviso prévio.

– Sério? – exclamou Júnior – Para onde você vai?

– Para Curitiba.

– Precisamos brindar. – disse Renata indo buscar os copos.

No final da manhã, o celular de Clarissa tocou. E Júnior acompanhou abobado Clarissa fazer o mesmo caminho de Soraya. Banheiro, sala da gerência e comunicado. Seguiu os brindes e a comemoração.

Lúcia se revezava entre torcer as mãos e roer as unhas. Será que seria chamada? Será que teria coragem? E se não a chamassem? Ia ficar enterrada a vida inteira ali. Passou o almoço, a tarde chegava ao fim e nada. Com lágrimas nos olhos, Lúcia pegou sua bolsa e fugiu do serviço. Não podia comemorar a felicidade das colegas quando a sua inveja a entristecia.

Na segunda, todas as olhavam com cuidado. Lúcia se sentou quieta, tentando se conformar com a sua vida. O celular tocou e ela atendeu, esperando ouvir a voz da mãe pedindo alguma coisa.

– Bom dia. É Lúcia Cardoso?
– Sim. É ela.

– Aqui é Adriana, da indústria Ambiental. Eu fiz uma entrevista contigo quarta-feira passada lembra-se?

– Sim, claro – respondeu Lúcia.

– Como eu te disse, o teu projeto de conclusão é muito interessante. Levei a idéia para o diretor da empresa e ele adorou. Como sei que você nunca trabalhou na área, quero propor um desafio: você está disposta a assumir a coordenação do teu projeto dentro da nossa empresa? É claro que nos primeiros seis meses você vai passar pelo mesmo programa dos demais formandos, até para conhecer a empresa. Mas a sua cobrança será maior, pois depois desse prazo, você não será assistente de ninguém, você já será coordenadora da sua própria equipe. Aceita?

– Aceito. – As palavras brotaram da boca de Lúcia, sem ela nem pensar.

– Meninas... vocês não vão acreditar. – começou Lúcia após desligar o telefone.

– Senhorita Lúcia. Quem não vai acreditar é a senhorita. – falou a gerente – Venha até a minha sala.

Na sala da gerente estavam Júnior e vários papéis espalhados na mesa.

– Senhorita Lúcia. O senhor Medeiros fez toda a análise do nosso novo cliente e foi com surpresa que na apresentação, os dados não fecharam. Descobrimos que alguns dados foram cadastrados errados. – explicou a gerente colocando algumas folhas nas mãos de Lúcia – Gostaria que me explicasse o erro?

Lúcia olhou os papéis, eram as informações digitadas por Ane. Não podia entrega-la, pois era um trabalho seu. Por um momento, pensou que a colega havia feito de propósito, por saber que Lúcia também era apaixonada por Júnior. Mas nada disso era importante, pois ia mesmo pedir demissão.

– Foi um erro de digitação, senhora. É possível observar que são números próximos. Talvez pela necessidade de rapidez, isso tenha acontecido.

– A nossa sorte é que o cliente também havia repassado alguns dados incompletos e creditou o erro a isso. Mas a senhorita não terá a mesma sorte. Pode passar no departamento pessoal, está demitida.

– Sério? – Lúcia arregalou os olhos

– Tenho cara de quem está brincando? Eles já lhe estão aguardando. Peça para uma de suas colegas guardar suas coisas. Nos computadores dessa empresa tu não colocas mais a mão.

Lúcia levantou da cadeira a tempo de ver o sorriso de felicidade no rosto de Júnior. Abriu a porta e pediu:

– Clarissa. Guarda as minhas coisas em um caixa. Acabei de ser demitida.

As meninas levantaram num alvoroço, mas Lúcia não deu tempo delas falarem. Dirigiu-se ao departamento pessoal e assinou os papéis. Ficou sabendo dos valores que receberia e ficou feliz. Tinha que estar em Curitiba em um mês. Então teria tempo de sobra para providenciar tudo e pegar o fundo de garantia. Deixaria metade com a mãe, e o resto levaria para alugar um local com as meninas.

Quando retornou na sala, Ane chorava e Júnior a olhava com desdém. Clarissa lhe entregou a caixa e Lúcia a pegou com um sorriso:

– Obrigada, meninas. Mas não chorem, afinal, serei colega da Clarissa e da Soraya. Ane e Renata, quero encontrar vocês várias vezes antes de ir para Curitiba, não podemos deixar de fazer um festão de despedida.

– É brincadeira? – perguntou Ane.

– Não. O telefonema que recebi antes da gerentona me chamar era deles. Estou dentro também. Por isso – virando-se em direção a Júnior, Lúcia exclamou – agora tu podes pegar esse teu sorrisinho e o teu empreguinho de merda e enviar no cu.

Lúcia saiu gargalhando, enquanto Júnior derrubava café na mesa. Suas colegas não puderam brindar, mas também não seguraram um sutil sorriso que surgiu em suas faces.


Lúcia nunca se sentiu tão leve. Pegou o ônibus transbordando de felicidade. Por um momento uma voz interna quis insinuar que eles poderiam mudar de idéia, mas ela apenas balançou a cabeça e começou a fazer os planos para a mudança.

Olhou para o pequeno e antigo edifício em que morava. Mesmo da calçada, pode ver as cortinas do seu quarto balançarem suavemente. Foi tomada pela nostalgia que passou pelo hall de entrada, subiu lentamente os quatro lances de escada observando cada detalhe das paredes. Abriu a porta do apartamento em que morava e encontrou o olhar surpreso da mãe. Sem pensar, resumiu tudo em uma frase:
– Mãe pode comemorar. Estou indo embora de casa e do estado. Vou morar em Curitiba.