domingo, 26 de setembro de 2010

Capítulo 8

Belo Horizonte, Cidade Jardim

A rua continuava a mesma da sua infância, as ruas arborizadas, os casarões e seus jardins, o tradicional colégio Loyola e seus irrequietos alunos, o museu Abílio Barreto. O engraçado é que nada disso a atraia.

Era apenas uma criança e percorria, junto com a mãe, as padarias, os pequenos mercados e as lojinhas procurando comprar tudo que estava na lista de madame Elvira, e depois, de madame Cristina.

Isso havia ficado em sua memória, o cheiro dos pães quentinhos, as velas coloridas, o perfume de madame Elvira, a dor de madame Cristina.

O carro parou na frente da mansão branca, que hoje era azul. Mas Vivian nunca iria conseguir se referir a ela de outra forma. Relutou muito em retornar ali, só que não podia negar o último pedido de sua mãe. O de terminar com tudo aquilo.

A corretora da imobiliária abriu os portões rapidamente, estava em pé, ereta, vestida com um comportado terninho marrom, com sapatos igualmente marrons. Um sorriso profissional nos lábios, preparada para convencer.

“Guarde sua lábia” pensou Vivian quando o motorista abriu a porta. Madame Elvira ficaria surpresa em saber que a negrinha que corria pelo jardim agora era uma importante empresária. Sorriu com essa idéia de que agora, ela estaria se revirando no tumulo, tão preconceituosa, jamais iria admitir que alguém de classe inferior fosse dona de sua casa.

– Boa tarde Senhora Mendes. Sou Mariana, a corretora.

– Muito prazer, Mariana.

– O seu marido não veio junto?

– Ele e as crianças estão em Londres – sorriu e explicou – eles já estão com mais de vinte anos, mas ainda acho que eles são crianças. As minhas crianças.

– Claro. Creio que toda mãe é assim. Ainda não sou mãe, mas a minha está sempre na volta.

– Isso significa que você é uma boa filha, Mariana. – Olhou em sua volta – Mas o que você tem a me dizer sobre a casa?

– É uma casa excelente. Como a senhora pode ver, o jardim está muito bem cuidado. Seguindo esse caminho – indicou com a mão o caminho em mármore carrara – e dobrando a esquerda, é possível chegar aos fundos onde estão à piscina, o jardim de inverno e um salão de festa...

– Piscina? – interrompeu Vivian – A casa passou por reformas? – Vivian se lembrava que o doutor Adriano tinha medo de água, por essa razão, nunca construiu uma piscina.

– Só na parte de fora. O último dono, apesar de não morar nela, achou que algumas melhorias no fundo da casa, que não tinha nada, iriam valoriza-la.

– Hum... alguém morou aqui, depois da família Ribeiro Melo.

– Sabe que não. Isso é uma curiosidade sobre a casa. Todos os que compram, a reformam, mas nunca chegam a morar.

– Realmente curioso.

– À direita temos a garagem, cabem até sete carros cobertos e mais uns cinco descobertos. A senhora prefere começar pela parte externa ou quer olhar a parte interna?

– Quero olhar a parte interna.

A corretora abriu a porta principal, ainda era original, Vivian pode observar que a moça teve que colocar um pouco mais de força para empurra-la.

– Como à senhora sabe, ela já vem mobiliada. Quase todos os móveis são originais. Posso tirar os lençóis se a senhora desejar. A casa foi toda limpa, então não tem o risco de levantar poeira.
– Não é necessário. – Vivian negou enquanto balançava a mão. Podia ver, mesmo com os lençóis que o grande sofá branco continuava lá. Assim como a cristaleira. Sabia que não guardava mais nada ali, madame Cristina levou todos os cristais que ali se encontravam. A fina televisão na parede dava um toque moderno em uma parede pertencente ao século passado. Vivian riu. Ela também era do século passado.

– Nas proximidades, a senhora irá encontrar salão de beleza, padarias, restaurantes, antiquários, supermercados, agências bancárias... e mesmo com tudo isso, é um bairro extremamente tranqüilo. Ter uma casa aqui é um sonho de consumo para qualquer morador de Belo Horizonte.

“E apesar disso, ninguém habita essa mansão” pensou Vivian.

Caminharam por toda a casa, até chegarem ao quarto principal. Com cuidado Vivian se aproximou da parede no qual a cama ficava encostada. Era o mesmo papel de parede. Ninguém o tocara.

“Só você pode acabar com isso Vivian” as palavras de sua mãe vieram em sua cabeça.

– Vou ficar com ela. – disse se virando para a corretora.

– Que ótimo. A senhora fez um excelente negócio.

–Tenho certeza que sim. – puxou uma cadeira e abriu a bolsa – Conforme o Cândido, dando o sinal, eu já poderia ficar na casa. O acordo persiste?

– Claro. O Cândido, meu gerente, já havia me passado essa particularidade.

– Bom. – Vivian começou a preencher o cheque. – Não gostaria de ficar em um lugar impessoal, como um hotel, tendo comprado uma casa dessas.

– Claro – a jovem concordou rapidamente – vou providenciar os papéis o mais rápido possível.

Despediram-se. Vivian indicou a garagem para o seu primo Antônio, que estava fazendo o papel de motorista, mas na verdade iria ajuda-la em sua missão. Eles precisavam acha-las, todas elas.
Vivian ainda se lembrava da noite anterior a morte de madame Elvira. Todos tiveram que sair de dentro da casa. Inclusive doutor Adriano. Como não tinham para onde ir, ela e sua mãe ficaram escondidas em uma peça junto à garagem. A meia-noite, todas as luzes da casa foram acessas. Os gritos de madame Elvira eram ouvidos dali. Vivian não entendia o que ela falava, mas sabia que não era bom, pois sua mãe estava com os olhos arregalados.

No outro dia, doutor Adriano a encontrou morta na grande cama de casal que compartilhavam. Fazia apenas um mês que seu jovem filho Carlos havia morrido e o homem ficou numa tristeza profunda.

Doutor Adriano se recuperou apenas um ano depois, quando encontrou Cristina, uma jovem viúva que estava em Belo Horizonte a passeio. O inesperado aconteceu e eles se apaixonaram. E todos sabiam que esse amor era verdadeiro, pois ambos eram muito ricos. Viveram cinco anos na casa, mas o casamento de desgastava com os abortos anuais de madame Cristina.

Quando tinha dez anos, a mãe sentou Vivian em um dos bancos da cozinha e disse: “Querida, não se assuste com o meu cabelo quando eu voltar da conversa que terei com madame Cristina e doutor Adriano. E vá arrumando as nossas malas”.

Quando sua mãe voltou, seus cabelos estavam totalmente brancos. Uma semana depois, todos se mudaram para Recife. Lá, madame Cristina teve três filhos, mas doutor Adriano só viveu cinco anos, a cada filho que nascia, ele definhava mais. Nenhum médico detectou a doença que o afligia.
Mas madame Cristina recompensou sua mãe, que negou qualquer coisa pra ela e pediu estudo para a filha. Assim, Vivian foi para boas escolas e acabou administrando os negócios de madame Cristina junto com os filhos dela. Não era empregada, era sócia.

E essa era a razão de Catarina, sua mãe, achar que, depois de toda a sorte que tiveram, deviam isso. Acabar com toda a maldade de Elvira.

– Hora de verificar se mamãe estava certa. – disse para Antônio.

Vivian pegou uma maleta marrom. Com calma, entrou na casa e se dirigiu até as escadas. A cada degrau que subia, sentia o coração se apertar. Tomada de uma ansiedade súbita, acelerou seus passos e entrou novamente no quarto principal. Foi até uma pequena mesa de madeira e colocou a maleta sobre ela. Abriu-a e de lá tirou um livro com uma capa verde desbotada e dois vidros transparentes, um, com líquido amarelo, e outro, com um líquido vermelho. Antônio entrou no quarto, em suas mãos, uma vassoura e um balde com água. Vivian colocou parte do líquido amarelo no balde, e esse tornou a água amarelada. Arredaram a cama e retiraram o papel de parede ficando apenas uma tintura branca, onde o líquido vermelho foi atirado. Ao entrar em contado com a cor branca, ele se tornou rosado e a seguinte frase surgiu:

“Qwas l i sol u mwl ddu”

– Bingo. – Antônio exclamou.

– Me alcance a máquina fotográfica. – Vivian pediu sem tirar os olhos da parede. Sentiu Antônio colocar o equipamento em sua mão. Com cuidado, ajustou o zoom e pressionou o botão para capturar a frase. Depois, conferiu a nitidez dos símbolos.

– Pode fazer. – pediu.

Após ouvir suas palavras, Antônio molhou a vassoura no balde e começou a lavar a parede. Depois de seca, Vivian atirou novamente o líquido vermelho, e nada apareceu.

Desceram até o escritório, Viviam ligou o notebook e nele conectou a máquina fotográfica. Com a foto ampliada na tela, abriu o livro com cuidado. Folheou as páginas, procurando cada símbolo, e aos poucos, a frase começou a lhe fazer sentido. Quando terminou, sentiu o corpo gelado. Olhou para Antônio e pronunciou em voz alta:

“Mortos são os gerados em minha cama.”

domingo, 19 de setembro de 2010

Capítulo Sete

São Paulo

João colocou os diários de lado. Nunca lhe passara pela cabeça que não era o filho sonhado por sua mãe. Até ela o julgava um mimado. Seria ele realmente um nada? Um aproveitador barato de mulheres de quinta categoria? Estava sendo injusto. Nádia nunca havia sido uma mulher de quinta, e se fosse honesto, confessaria pra si mesmo que ela casou por amor, por acreditar nas palavras dele, o resto veio pela falta de respeito.

Levantou da poltrona e olhou para o envelope fechado. Ali estava a chave para encontrar o resto da sua família. Mas queria isso? E se eles quisessem parte do dinheiro da mansão?

“Não. Se eles soubessem já teriam vindo atrás há muito tempo.” Foi até o bar e se serviu de um copo de uísque. Resolveu não procurar ninguém. Ficaria com as pessoas de sua classe. Sairia. Iria ao teatro. Freqüentaria a academia e aceitaria todos os convites para as festas. Olhou-se no espelho, era um homem alto, quase um metro e noventa de altura. Seus cabelos negros contrastavam com a pele extremamente branca e com os olhos muito azuis. O rosto quadrado e aristocrático lhe dava uma certa beleza. Assim como o corpo, embora esse não estivesse tão atlético.

Colocou os diários de sua mãe em uma caixa e guardou em um armário próximo. Pegou o envelope ainda fechado, o último enviado pelo detetive quando sua mãe já estava morta, abriu a primeira gaveta da mesa de escritório e ali o deixou repousando.

João chegou bufando em casa. Havia levantado cedo e ido a academia. Sua inscrição havia sido cancelada: não era mais bem vindo. Acabou indo para uma de classe média, onde ninguém sabia quem ele era. Mas não era a mesma coisa. No seu restaurante preferido, apesar de haver mesas vazias, lhe informaram que não havia lugares disponíveis. Tentou vários outros e obteve a mesma resposta. Terminou sentado em uma calçada comendo um cachorro-quente.

Passou a tarde vagando, ao entardecer, voltou ao flat e se arrumou, foi ao teatro e as pessoas, antes amigas, o ignoraram. Estava sozinho. Por culpa de Nádia. Nem ele pensaria em uma vingança tão perfeita.

“Não nasci para ser sozinho” pensava enquanto abria a gaveta e tirava o envelope. Rasgando o papel pela lateral, tirou de lá duas folhas. Na primeira, referências a Silvio. Na segunda, ao filho ilegítimo.

O irmão falecido, Silvio Ribas, tinha deixado família em Porto Alegre. Já o filho ilegítimo se chamava Josias e não tinha sobrenome. Morava em um morro no Rio de Janeiro.

“Pobre” pensou João “não preciso de um pobre, mesmo sendo o meu tio”. Tio Sílvio estava morto, sua filha Joana, havia casado com um pedreiro e tinha uma filha pequena. “Outro pobre” pensou João.

Mas a sensação de solidão o invadia. Seus amigos o haviam abandonado. Os convites para festas sumiram. Seu sobrenome não significava mais nada. Não na pessoa dele. Nádia continuava saindo em todas as colunas sociais dos jornais paulistas, sendo consolada por toda a sociedade paulista “que deve chamá-la de cornuda pelas costas e na sua frente dizer que agora ela está melhor”.

Naquela noite, ao se aproximar de uma jovem senhora, uma antiga conhecida, essa se afastou dizendo não precisar de parasitas. Com isso, suas esperanças de dar um novo golpe do baú se esvaíram.

Foi até o computador e conectou-se a internet. Acessou um site de mapas e informou o endereço mais próximo, o endereço do morro. Não era tão distante. Imprimiu as informações, tomou mais um copo de uísque e decidiu pensar sobre o assunto no outro dia. Desligou tudo e foi pra cama.

Havia esquecido de fechar as janelas e assim, as sete da manhã, o sol invadia o quarto. João abriu os olhos com a claridade. Olhou para a mesa onde estava o relógio e encontrou a estranha pedra em forma de triângulo. Não se lembrava de tê-la colocado lá. Aliás, havia esquecido dela.

Levantou, colocou um abrigo e foi para a academia. Na esteira ficou pensando na pedra, então lembrou que havia aberto a caixa com os diários na cama. Como ela estava junto, ele mesmo deveria ter colocado na mesinha, separando-a dos diários. Pois acabou levando a caixa para a sala, para ler de forma mais confortável na poltrona.

Perto da academia havia um restaurante a kilo, entrou lá e se serviu. Uma das meninas, que havia se exercitado no mesmo período que ele, lhe sorriu. Pensou em convida-la para sentar em sua mesa, mas não estava com cabeça para uma transa. E pela qualidade das roupas que ela vestia, era a única coisa para que servia. Terminou de comer e voltou para o flat.

Sentou na cadeira em frente à mesa do computador e olhou os papéis impressos. “Por que não?” se interrogou. Foi ao quarto e arrumou algumas roupas em uma pequena mochila, pretendia voltar em dois dias, encontrando ou não o tal Josias. Por impulso, pegou a pedra e a guardou também.

Desceu até o subsolo e colocou tudo no banco traseiro do carro esporte preto. Com prazer, sentou-se ao volante do carro e girou a chave, ouviu o barulho do motor, ligou o som e o jazz tomou conta do pequeno ambiente. Ao sair da garagem teve que frear bruscamente para não atropelar um gato avermelhado, que ainda o encarou com seus enormes olhos verdes. As pessoas o olharam de forma esquisita.

“A humanidade está realmente cruel” pensou João “estranham um motorista parar para não atropelar um gato”. Seguiu em frente e deparou-se com o grande tráfego de São Paulo e logo ficou parado.

Já era noite quando conseguiu andar com desenvoltura na Via Dutra. Estava em um ponto em que podia enxergar o Aeroporto Internacional de São Paulo, o Cumbica. Em nenhum momento lhe passou pela cabeça: ir de avião. Sentia prazer em dirigir e achava que essa viagem serviria para colocar suas idéias no lugar. Como o que iria fazer de sua vida dali por diante. E principalmente, algo em que nunca havia pensado: no que poderia trabalhar.

A viagem estava iniciando realmente agora, e João podia prever um trajeto tranqüilo, não havia movimento do lado contrário e o caminhão que o seguia não estava tão próximo. Foi quando olhou para frente e viu o menino no meio da pista que estava.

domingo, 5 de setembro de 2010

Capítulo Seis

Duque de Caxias, Rio de Janeiro

Doca sentou em uma calçada e ficou pensando no que iria fazer. Não podia ficar muito tempo em Duque de Caixas, Bagão tinha conhecidos ali. Na sua imaginação, já circulavam cartazes dizendo:
“Procura-se Eduardo Oliveira, 10 anos, pele morena, cabelos e olhos castanhos, magro, 1,45 de altura. Paga-se recompensa. Trazer vivo ou morto”.

“Preciso sair daqui e ir para um lugar sem sol. A mãe sempre dizia que eu era bem branquinho, como ela e meu pai, mas a nossa pele havia ficado morena de tanto sol. Se eu ficar branco, ninguém mais me reconhece.”

Foi nesse momento que Doca viu um pequeno caminhão azul, muito velho, carregando vários móveis. Um homem se despedia e entrava em um opala. Dentro do carro, uma mulher e duas crianças. Estavam se mudando.

Doca se aproximou com cuidado do motorista, um homem de cabelos e bigodes brancos, que colocava uma camiseta.

– Tio, pra onde o senhor está indo?– perguntou Doca

O homem virou assustado, procurando a voz. Era um homem alto e olhando para baixo, encontrou Doca, fazendo a cara mais inocente do mundo.

– Estou indo pra Resende, menino. – respondeu – Por que quer saber?

Rezende era quase fora do Rio de Janeiro, pelo que Doca lembrava das aulas de geografia, e subitamente decidiu: ia para São Paulo.

– O senhor me dá uma carona? – pediu.

– Mas a tua mãe vai ficar preocupada contigo.

– Não, foi ela quem pediu. – mentiu Doca – Ela está muito doente e meu pai foi trabalhar em uma construção em São Paulo. Não conseguimos falar com ele, tenho apenas o endereço e não tenho dinheiro para pagar um ônibus até lá. Por favor, nos ajude.

O homem ficou pensativo, como se através dos olhos de Doca, pudesse identificar se o menino estava mentindo ou não. Mas as lágrimas que ameaçavam desabar o convenceram.

– Está bem. Entre pelo lado do carona, moleque.

Doca sorriu e correu para o outro lado, com medo do motorista mudar de idéia. Sentou, colocou a pequena sacola e a bolsa da sua mãe no chão, antes de ajustar o cinto de segurança.

No rádio, tocava uma música sertaneja. No painel, várias fotos e adesivos.

– Meu nome é Antônio, e o seu?

– Eduardo.

– Meu neto mais novo se chama Eduardo. O que a sua mãe tem?

– Ela sofreu um acidente. Está com o corpo todo queimado.

– Que horror. Ela estava no ônibus que o caminhão bateu?

– Sim.

– Nossa. Desejo boa sorte pra vocês. A maioria morreu naquele acidente, não?

– Sim.

Antônio acabou mudando de assunto, viu que o menino se encolhia cada vez mais e sua voz se tornava chorosa. Coitado, não deveria ter ninguém mais no mundo. Então começou a contar as travessuras dos seus netos. Três horas depois, chegavam a Rezende.

– Pode me largar aqui na Via Dutra mesmo. – falou Doca.

– Você tem certeza?

– Claro – sorriu Doca – Vou até um posto ver se consigo carona com um caminhoneiro.

Antônio parou o caminhão e mexeu na carteira.

– Não é muito – disse dando quinze reais a Doca – Mas pelo menos você pode comer alguma coisa.

Doca desceu do caminhão, e o viu andar mais um pouco, dobrar em uma rua e sumir. Com cuidado, caminhou meia-hora pelo acostamento da rodovia, até achar um posto. Já era quase noite e logo os caminhoneiros iriam parar para jantar e dormir. Avistou na lateral um banheiro, lá dentro havia além de pia e vaso, chuveiros. Ajeitou suas coisas e tomou um banho rápido. Quando desligou os chuveiro, notou que os seus pés estavam mais claros. Observando as pias, pegou uma pasta de dente esquecida. Usando os próprios dedos, fez uma limpeza rápida.

Saiu do banheiro olhando para os lados, caminhou lentamente até avistar uma grande árvore. Subiu e se ajeitou em um dos galhos mais próximos. Mexeu na bolsa da mãe, encontrou uma maça e um pequeno pacote de biscoitos. Comeu a maça e guardou o pacote para mais tarde. Cansado. Dormiu sentado no galho com as costas grudadas ao tronco.

Eram cinco da manhã quando acordou com o ronco do motor de um grande caminhão. Saiu rapidamente da árvore e foi até o estacionamento, onde umas dez carretas estavam paradas. Os quatro primeiros motoristas que abordou lhe negaram carona. O último, um homem na casa dos quarenta, com uma barriga imensa, chinelo de dedo e uma aparência de sujo o analisou de cima a baixo.

– Pra onde você vai?

– São Paulo. – Respondeu Doca

– Então entra. Vou até Pindamonhangaba.

Doca entrou, mas sentiu uma estranha aflição. Desejou pegar a pedra, mas isso ia chamar a atenção. Buscou os biscoitos no fundo da bolsa da mãe.

– Bolsa de mulher, hein?! – ao olhar os biscoitos – Isso não é café. Cê ta muito magro moleque. Espera um pouco. – o homem desceu e abriu uma pequena caixa que ficava acoplada ao caminhão. – Tome – disse ao retornar, oferecendo um pão com margarina.

Doca comeu com gosto e descobriu no caminho que Zé, como era conhecido, não era uma má pessoa. Sua aparência se devia ao cansaço, pois fazia três dias que viajava direto e só conseguira dormir algumas horas na noite anterior.

– Mas... como você agüenta? – perguntou Doca, curioso.

– Tomo umas coisas.

– Não é perigoso?

– Perigoso é... mas tenho quatro filhos pra sustentar. Preciso de dinheiro e quanto mais tempo dirigir, mais dinheiro eu ganho.

– E é muito dinheiro?

– Pior que não. Quem ganha dinheiro é o patrão que nos paga. O bom é carregar carro. Mas é um mercado mais concorrido.

Doca ficou sabendo os tipos de carga e o tempo de cada uma. Achou a vida de caminhoneiro interessante, embora fosse muito corrida. Tão corrida quanto a estrada, e quando se deu conta, Zé já estava parando na beira da estrada para Doca descer.

– Menino, dificilmente você vai conseguir carona agora. Vai caminhando até o segundo posto que encontrar nas proximidades de Taubaté, lá, sempre tem uns camaradas legais que param para almoçar.

Doca ganhou mais dez reais e agradeceu. Ajeitou a sacola nas costas, atravessou a bolsa da sua mãe no corpo e iniciou a caminhada pelo acostamento. Percebeu que não era o único que fazia aquele caminho. Outras pessoas o acompanhavam, alguns a pé, outros de bicicleta. Carros e caminhões passavam levantando poeira, alguns soltando fumaça. Nesse momento, idosos e crianças tossiam.

Doca caminhou os dezesseis quilômetros que separavam Pindamonhangaba de Taubaté. Era quase hora do almoço quando viu um carro destruído. Estavam retirando-o debaixo de um ônibus.

– Foi culpa do carro, seu guarda – dizia uma senhora baixinha – eu vi quando ele tentou ultrapassar um outro carro e entrou embaixo desse ônibus.

– Aonde a senhora mora? – perguntou o policial rodoviário anotando tudo em um papel.

– Ali – disse à senhora apontado para uma rua – na Vila Nossa Senhora das Graças.

Doca foi passando pelas pessoas até ver um menino que deveria ter a sua idade.

– Oi, aqui é Taubaté?

– É sim. Você estava no ônibus? – perguntou o menino.

– Não – foi à resposta de Doca que seguiu em frente, desviando dos curiosos. Passou por um posto parecido com o que havia parado no dia anterior, caminhou mais um pouco e encontrou o segundo.

Doca entrou na lanchonete e constatou que um prato de comida era barato. “Cinco conto uma la-minuta” pensou “não como a dois dias, posso comer um prato assim.”

Pediu seu almoço e comeu com vontade. A atendente, com pena, pegou um copo da água e colocou ao lado do prato. Doca sorriu para a bonita moça e pensou o que ela fazia ali? Mas se corrigiu, agora sabia que ninguém escolhia os seus caminhos. Terminou o almoço e pediu carona aos poucos caminhoneiros que ali se encontravam. Mas todos lhe negaram. E Doca voltou a caminhar pela Via Dutra.

“Dizia aquela revista no colégio que a Via Dutra recebeu esse nome por causa do presidente Dutra” se distraia Doca enquanto colocava uma camisa na cabeça para proteger do sol forte “que foi inaugurada em janeiro de 1951, começa no trevo das margaridas no Rio e termina no Tietê em São Paulo, e tem quatrocentos e dois quilômetros. Quantos quilômetros será que eu já percorri? E quantos faltam para eu chegar a São Paulo se tiver que ir caminhando?”, Doca se questionava enquanto observava o mato que o acompanhava pela rodovia.

“Será que Bagão morreu? Se ele morreu, ninguém vai querer me matar. Não...”Doca sacudiu a cabeça “Rico viria atrás de mim. Ele nunca ia me perdoar por ter matado o namorado dele. E caminhando nesse sol eu nunca vou ficar branco.” Observou os braços cada vez mais escuros. “Falando em branco, o que a professora havia falado sobre os bandeirantes?”

Doca caminhou quase quatro horas, misturando pensamentos de sua vida pessoal, com leituras de revista e assuntos aprendidos na escola. No final da tarde, chegou a Caçapava. Parou em uma lanchonete e pediu para usar o banheiro. Abriu a torneira, lavou o rosto e tomou água. Não sentia mais os seus pés. Ao mesmo tempo, lhe parecia que poderia andar pelo resto da vida.

Ao chegar na rua observou uma Kombi que dizia “Faço Frete”. O homem se preparava para sair quando Doca se aproximou.

– Oi. Aonde você vai? – o homem deu um pulo ao ouvir a voz de Doca.

– Que susto. Vou fazer uma entrega perto do de São Paulo. Por que?

– São Paulo capital?

– Claro.

– Você pode me dar uma carona?

O homem olhou na volta, como se procurasse alguém.

– Não tem nenhum adulto com você?

– Não.

Ele coçou a cabeça, como se pensasse por um momento.

– Está bem. Vamos. – Disse num tom, como se concluísse que um menino daquele tamanho não faria nenhum estrago.
Era noite quando Doca desceu da Kombi. Ao longe. Observava as luzes no aeroporto de São Paulo e por cima de sua cabeça os aviões passavam. Sempre tivera curiosidade de andar num. Distraído, tirou a camisa que ainda estava amarrada sua cabeça, e essa escapou de sua mão, sendo levado pelo vento para a pista contrária. Sem pensar, atravessou a pista correndo para busca-la. Abaixou-se para pegá-la no chão. Quando se levantou e olhou para frente, viu dois faróis muito perto e gritou.