domingo, 28 de novembro de 2010

Capítulo Dezessete

Belo Horizonte, Bonfim

– Cemitério? – perguntou Antônio – O que vamos fazer em um cemitério?
– Tenho uma intuição. Mas não tenha medo, o cemitério do Bonfim é diferente.

Em silêncio, percorreram o caminho de um bairro a outro. Vivian não tinha certeza do que estava fazendo. Nem sua mãe havia achado uma resposta para não haver nada sobre os herdeiros de Irina nas peças da casa. Entre todos os lugares de Belo Horizonte que Elvira poderia ter carregado uma maldição, só passava pela cabeça de Vivian um único lugar: o próprio tumulo.
Estacionaram próximo a porta de entrada. Caminharam devagar, observando a guarita de entrada e os vários caminhos. As vezes, paravam e admiravam uma escultura, para manterem a imagem de turistas ou simplesmente por ser realmente bela.

– Ele é imenso. – comentou Antônio
– É sim. Me parece que tem mais de cento e oitenta e cinco mil sepultamentos. É praticamente uma cidade.
– Uma cidade de mortos. – Antônio comentou – Lembra um pouco aquele cemitério de Buenos Aires, onde Evita está enterrada.
– É verdade. Como lá, as esculturas foram feitas por artistas de renome na época. Quase passa por um museu.
– É verdade. E ele já virou ponto turístico?
– Não sei. Há um tempo atrás, tinha um projeto para isso, mas não sei se foi aprovado ou não.
– O que procuramos?
– O mausoléu dos Melo.
– Por que?
– Acho que a resposta que procuramos está lá.
– No mausoléu? Mas como vamos saber?
– Não sei. Preciso ir lá e ver o que ela me diz.
– Vivian! Ela não irá te dizer nada.
– Calma. – Vivian riu. – Ainda não estou louca. Confie em mim.

Percorreram um longo caminho, até chegar em uma parte mais antiga. O nome das famílias tradicionais dos anos quarenta gritava nas lapides de mármore. Vivian parou na frente de uma e passou os dedos.

“Carlos Ribeiro Melo
1915 – 1940
Eterno são os jovens que brilharam em nossas vidas.”

– Ele morreu jovem.
– Muito jovem. Eu era criança, mas ainda me lembro dele. Sempre sorrindo e arrumando os cabelos negros. Era muito vaidoso.
– Como ele morreu?
– Na teoria? Em um acidente de trem.
– Na teoria? Como assim?
– Na prática, Irina colocou uma pedra amaldiçoada na pasta de Carlos. Ele a carregava no momento do acidente.
– Irina também era bruxa?
– Não. Irina ganhou essa pedra de Elvira. Minha mãe acha que Irina descobriu que era a sua sentença de morte e a repassou para Carlos. Como uma vingança.
– Mas ela não o amava?
– Esse é o grande mistério. Quando eles se casaram, minha mãe acreditava que sim. Só que o fato dela o empurrar para a morte, fez todos duvidarem. Tanto que ela foi embora da cidade sem um único tostão.
– Nossa. E o que aconteceu com ela?
– Nos primeiros anos eu não sei. Mas acabou em São Paulo. Mamãe achou uma foto dela em um jornal, quando seu Adriano ainda estava vivo. Parece que fez um bom casamento por lá.
– Levou a vida adiante.
– Sim. Aqui está.

Antônio olhou na mesma direção e viu o mausoléu dos Melo. Entraram pela pequena porta. Sobre cada tumba, um grande mármore cor de gelo refletia a pouca luz do sol que por ali entrava. No lado direito, encontrava-se o que um dia havia sido o corpo de doutor Adriano. No lado esquerdo, refletindo de forma estranha as cores rosa e amarelo escuro, a morada eterna de madame Elvira.
Quase por instinto. Vivian colocou as duas mãos sobre o mármore e fechou os olhos. Estava ali. Ela tinha certeza que estava ali.

– Antônio. Vou ser obrigada a lhe pedir uma coisa.
– O que?
– Precisamos abrir o tumulo de madame Elvira.
– Você pirou, Vivian?
– Está aqui. Tenho certeza que está aqui. Você vai me ajudar?
– Não concordo com o que você está me pedindo. – Antônio suspirou. – Mas como prometi ajudar, vou faze-lo até o final. Quando você quer abrir o tumulo da bruxa?
– Hoje à noite.
– Mas... precisamos de mais tempo para observar o funcionamento. Os horários dos vigias, os acessos... – Antônio gesticulava sem parar.
– Você viu algum vigia por aqui?
Antônio olhou para os dois lados. Caminhou um pouco e voltou.
– Não. – Disse surpreso.
– Se de dia eles não se animam vir na parte velha, não será à noite.
– Mas como vamos fazer para entrar?
– Olhe para a sua direita. Mais três quadras e temos um muro. Essa será a nossa porta de entrada... e saída.

Eram mais de onze horas da noite quando voltaram ao cemitério. Dessa vez, estacionaram em uma das áreas mais escuras, que eram próximas a parte mais antiga. Colocando uma escada em um dos muros laterais, Antônio verificou se o mausoléu estava próximo, assim como se havia algum vigia a vista. Repetiu a operação cinco vezes, até encontrar o ponto indicado durante o dia por Vivian.
Antônio posicionou uma segunda escada para descerem e ajudou Viviam a passar pelo muro. Vivian achou incrível conseguir fazer aquilo. Quando voltasse pra casa, iria comprar um presente especial para a sua professora de yoga.
Com a ajuda de lanternas, chegaram ao tumulo de Elvira. Antônio pegou um pé de cabra e começou a levantar a tampa de mármore. Seus braços tremiam, o suor começou a escorrer pela sua testa. Medo e adrenalina pareciam lhe dar forças para finalmente levantar todo o tampo e deixa-lo encostado à parede.

– Não há terra. – exclamou surpreso. – E o caixão fica bem próximo.
– Melhor. Assim, será mais fácil.

Vivian estendeu o braço e soltou a tranca. Não podia contar com a ajuda de Antônio, que segurava a pesada tampa. Esticou o outro braço e tentou levantar a tampa. A princípio não achou nada que pudesse puxar. Depois de tatear, encontrou uma parte mais elevada e puxou para cima. Com um reflexo que não imaginava, conseguiu colocar as mãos abaixo da tampa e levanta-la totalmente.
Depois de conseguir apoiar a tampa do caixão, de forma que conseguisse segura-lá com uma mão. Pegou a lanterna que estava no bolso do seu casaco e a ligou. Quando direcionou a luz para o caixão, Antônio teve que segurar um grito. O que virão foram o corpo de Elvira intacto, usando um vestido longo e azul, seus braços se cruzavam como se fosse uma vampira. Embaixo deles, um livro.

– Antônio. Você consegue segurar com uma das mãos a tampa do caixão? – Vivian sussurou.
– O que você vai fazer, Vivian?
– Preciso tirar o livro debaixo dos braços dela.
– Você está brincando né? Você vai mesmo mexer no corpo?
– Eu tenho que fazer isso.
– E se ela acordar?
– Não vai. Ela está morta.
– Mas o corpo dela está intacto! Depois de todos esses anos...isso não é normal.
– Você consegue ou não? – Vivian elevou a voz, percebendo que o pânico começava a tomar conta de Antônio.
– Vou tentar.

Antônio apoiou uma das pernas na parede. Com um esforço supremo, tirou a mão que segurava o mármore e pegou a tampa. O mármore veio para frente, o que fez ele pedir num fio de voz:
– Ande rápido. Não vou agüentar muito tempo.

Vivian se curvou e levantou os braços. Sentiu o gelo daquele corpo a envolver por um segundo e depressa, puxou o livro. Por um momento, achou que Elvira iria abrir os olhos e segura-la. Mas isso não aconteceu.
Rapidamente, colocou o livro no chão e foi baixar a tampa do caixão. Com cuidado o recolocou.

– Não esqueça a tranca. – Antônio avisou.
Baixaram o mármore e começaram a sair do local. Olharam para os lados, mas não havia nenhum sinal de vigias. Caminharam rapidamente até o muro, onde encontraram a escada. Após passarem pelo muro, correram até carro. Antônio destravou as portas, guardou as escadas na parte traseira e se dirigiu ao banco do motorista. Vivian aguardava sentada no banco do passageiro, com uma visível dificuldade para respirar.

– Você não tem mais idade para isso, Vivian. – Antônio a censurou.
– Eu sei. Mas mamãe me dá forças.

Com o carro em movimento, Vivian ligou a luz interna e olhou o livro pela primeira vez. A capa era preta e de couro. Sem nenhuma inscrição ou identificação. Ao abri-lo, começou a folhar as páginas. Antônio a observou com o canto de olho, como que esperando uma justificativa para a loucura que haviam cometido.

– Então, o que é? – Perguntou, não agüentando mais. Vivian fechou o livro e olhou para a rua, aumento a angústia de Antônio. Após respirar profundamente, voltou o seu rosto para ele e respondeu:
– Encontramos. Pelos poucos parágrafos que li, não é exagero meu dizer que encontramos o livro de Elvira.

domingo, 21 de novembro de 2010

Capítulo Dezesseis

São Paulo, Morumbi

Doca acordou com uma batida na porta. Olhou no relógio e já eram dez horas. “Essa cama me faz dormir demais.” Pensou, enquanto se levantava e caminhava tropeçando nas próprias pernas.
Abriu a porta e uma moça loira, com o uniforme cinza do hotel, lhe sorriu.

– Bom dia, Doca. Você não deveria abrir a porta assim. – disse enquanto empurrava um carrinho para dentro do flat. – Meu nome é Teresa. E eu trouxe o seu café da manhã.
– Bom dia. – Doca respondeu sem jeito. – Não estou acostumado a perguntar quem é.
– Então é bom você aprender. Mesmo aqui, é perigoso ir abrindo as portas. Temos uma rotatividade grande de pessoas estranhas circulando aqui dentro.

Doca concordou com um leve acesso de cabeça. Seus olhos brilharam ao verem os pães e sentiu uma grande fome.

– Bom, está tudo aqui. Se precisar de alguma coisa, basta pegar o telefone e me ligar, certo?
– Certo. E, obrigada Teresa.
– De nada. Ao meio-dia venho trazer o seu almoço.

Doca ligou a TV. Enquanto assistia um desenho japonês, comia com vontade as bolachas de chocolate. Quando achou que a barriga estava bem cheia, sentou-se numa das poltronas e ali ficou.
Antes do meio-dia tomou um banho. Aproveitou e pegou um pouco do gel de cabelo de João e colocou no seu. Olhando-se no espelho, brincou:

– E ai, não tô bonito? – O menino refletido no espelho sorriu.

Voltou ao quarto e abriu a bolsa que era da sua mãe, de dentro da carteira, tirou uma foto em que os dois estavam abraçados. Ele era pequeno, deveria ter um ou dois anos. E sua mãe, muito jovem, parecia muito mais a sua irmã do que a sua mãe.

– E ai, mãe? Não fico legal de bacana. – suspirou encarando a figura da foto – Gostaria que você estivesse aqui. Tenho certeza que ia gostar do João. Apesar de ter dinheiro e usar roupas de playboy, é um cara legal.
Uma batida na porta lhe tirou dos devaneios, devia ser Teresa. Quando ia abrir a porta se lembrou.

– Quem é?
– É o almoço. – Ouviu uma risada. – É a Teresa, Doca.

Doca abriu a porta ligeiro. Ela empurrava outro carrinho. Ajeitou a mesa e colocou um prato com arroz, bife, ovo e batata-frita. Um prato extra com mais um bife e mais batata. E mouse de chocolate.

– Uau. Adoro batata-frita. – Doca exclamou.
– Então, divirta-se.

Doca sentiu-se um rei. Nunca tivera um dia desses: comer, assistir TV, dormir. Não fazia nada, era apenas servido. E assim, assistiu TV até o lanche da tarde. Depois de comer o enorme sanduíche, não resistiu e acabou por dormir na poltrona.

Quando abriu os olhos, estava com frio. Com surpresa, constatou que não estava mais no flat de João e sim numa sala espaçosa. Os móveis eram antigos, de madeira. Os quadros, que estavam pendurados nas paredes, retratavam pessoas com roupas antigas, parecidas com as fotos que apareciam nos livros de história.

– Como ousa invadir a minha casa? – uma voz áspera perguntou.

Doca emudeceu. Olhou para a mulher a sua frente: um tanto velha, com um longo vestido, seus olhos escuros refletiam algo que fez o seu coração se apertar. Não sabia onde estava, nem quem era aquela criatura. Tentou mexer os dedos e não conseguiu. Encontrava-se paralisado.

– O que você pensa que é, sua imundice? – ela perguntou, encarando-o – Você é bizarro, uma anomalia da natureza.

“Isso é um sonho” pensou Doca “culpa daquele filme de terror que assisti com o João. Daqui a pouco a Teresa vai chegar e bater na porta, e eu vou estar feito um babaca, me borrando todo.”

– Ninguém vai chegar – disse a mulher lendo os seus pensamentos – e agora, você está em minhas mãos.

Ouviu-se um miado. Doca conseguiu mexer a cabeça e viu o mesmo gato da rodovia. “Nunca mais como tanto pão. Bem que o João me disse que fazia mal comer tanto e dormir”.
– Cale a boca. – a mulher ralhou com o gato – Não existe nada que você possa fazer.

O gato caminhou vagarosamente, indo para trás da poltrona de Doca. Esse pensou em se levantar, mas o olhar da mulher, que mais parecia uma bruxa, o impediu. Ela ergueu uma mão e a bolsa de sua mãe veio pelo ar. Vagarosamente, a pedra foi retirada. Logo em seguida, a bolsa caiu no chão.

– Hei. Não jogue a bolsa no chão.
– Por que não? – ela riu – Já joguei a sua mãe em um caixão, jogar sua bolsa no chão não é nada.
– Mentirosa. Minha mãe morreu em um acidente. – Doca queria que sua voz soasse com força, mas o que ouviu foi uma fina e chorosa criança.
– É verdade. Acidentes acontecem. – dizendo isso, ela ergueu a outra mão e a outra pedra veio. Murmurando palavras estranhas, as pedras se encaixaram. – E agora, teremos outro acidente.
– Pare com isso, Elvira. – Doca ouviu uma voz atrás de si. – Ele é apenas uma criança, não tem culpa de nada.
– Todos carregam a culpa. E ele é o que melhor simboliza. Quer algo melhor que um bastardo para descender de uma vagabunda?
– Eu não sou um bastardo. – Doca reclamou.
– Mas seu pai era.
– O seu problema é comigo. Deixe-os em paz.
– Eles só terão paz, quando eu estiver em paz. Feche a boca, maldita, que o seu anjo agora irá para o céu.

Doca arregalou os olhos quando a mulher avançou em sua direção, nesse momento, o gato pulou na poltrona, Doca sentiu suas unhas ficarem em um dos seus braços, antes de ele dar um novo pulo.

– AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH. – Doca gritou.
– Calma, Doca. Sou eu, João.
Doca olhou João, e sem pensar, o abraçou. João, preocupado, retribuiu o abraço do menino. Ele tremia, estava muito assustado.
– O que houve, Doca? O que aconteceu? – João falou enquanto o afastava de leve. Notou sangue no seu braço direito. – Doca o seu braço está sangrando. Quem fez isso com você?

Sem conseguir falar, Doca simplesmente apontou para o chão. João acompanhou a direção e viu as pedras próximas à televisão.

– O que as pedras estão fazendo ali, Doca?
– Ela as pegou. – Doca sussurrou sem desviar os olhos do objeto.
– Ela quem? – João estranhou.

Mas Doca não respondia. Sem outra opção, João se encaminhou até as pedras, e ao pegar uma, a outra veio junto. Estavam coladas.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Capítulo Quinze

Curitiba, Ópera de Arame

– Meu Deus – murmurou Clarissa de ponta cabeça, sentia os pés enrolados na grade, mas não sabia quanto tempo iria agüentar. Não tinha coragem de gritar.
– Clarissa! O que aconteceu? Agüente firme. – Jorge falou – Marcelo! Me ajude.
– O que é isso? Como ela foi para ai?
– Não sei. Segure as pernas dela. vou pedir para ela dar um impulso e ver se eu alcanço as suas mãos.
– Ok.
– Clarissa! O Marcelo está segurando as suas pernas. Dê um impulso com o corpo e estenda os braços. Tente pegar na minha mão.

Clarissa sentia as mãos de Marcelo em sua panturrilha. Ele era magro e isso lhe dava medo, pois achava que ele não agüentaria o seu peso. Por outro lado, não podia se arriscar a cair. Deu o primeiro impulso e não chegou nem perto das mãos de Jorge. Sentiu uma dor nas costas ao bater com elas na grade.

– Não desista, Clarissa. Tente novamente. – Jorge gritou.

Respirando fundo, Clarissa deu um novo impulso e dessa vez seus dedos chegaram a passar pela mão de Jorge. Um novo choque com a grade e Clarissa não segurou nem o grito nem a retenção do corpo. Seus pés começaram a se soltar e Marcelo se apavorou.

– O que vocês estão fazendo? Meu Deus, ela tentou se matar? – disse uma voz ao mesmo tempo em que Clarissa sentia mais duas mãos em seu corpo.
– Não. Ela caiu. Mas não me pergunte como. – Clarissa ouviu Jorge respondendo. – Clarissa. Temos mais gente aqui. Tente mais uma vez.

Clarissa deu um novo impulso e dessa vez, suas mãos agarraram as de Jorge. Sentiu seu corpo ser puxado. Quando colocou os pés no chão, observou uma multidão em sua volta, entre eles o rapaz que a empurrou.

– Foi ele – ela apontou – foi ele que me empurrou.
– Eu?! – exclamou o rapaz. – Essa mulher é louca!
– Foi um acidente. – Disse uma voz mais ao fundo. – Ele se desequilibrou e encostou nela, que estava descuidadamente sentada em um lugar perigoso, carregando um peso que não era seu. – conforme a voz foi se aproximando, Clarissa o identificou como o homem cabeludo.
– Obrigado Samuel. – disse o guarda ao qual Clarissa reconheceu pela voz, como o homem que havia lhe ajudado – Vocês dois foram errados. Rafael – disse apontando para o rapaz – você e seus amigos sabem que não é para correr aqui. E você mocinha – disse apontando pra ela – por usar indevidamente a grade como banco. – suspirou – Como estão todos bem, vamos todos circulando.
– Vamos, Clarissa. Ainda temos trabalho a fazer.

Clarissa acompanhou o colega, dentro da ópera lembrou da pedra de Lúcia. Quando despencou, sua mão abriu e ela chegou a ver a pedra caindo dentro da água. Agora, teria que se explicar.


– Então? – Soraya perguntou ansiosa – Que tal o seu primeiro dia de trabalho?
– Um sonho. Nem acredito estar trabalhando num lugar como esse.
– Eu também me senti assim. Tinha medo de estar sonhando, acordar e dar de cara com aqueles malas.
– Engraçado, tive a mesma sensação. – Lúcia sorriu – Sabe, achei que ia sentir falta do Júnior, mas desde o dia que ele conseguiu a minha demissão...
– Você finalmente se deu conta que ele não era um príncipe encantado?
– Nem sapo encantado.

Ambas gargalharam. Ouviram o sinal. Era hora de ir embora. Pegaram as bolsas e Lúcia olhou mais uma vez para a sua mesa. “Minha mesa” pensou “preciso trazer algumas coisas para colocar nela, dar o meu toque pessoal.”

– Cadê a Clarissa? – Lúcia perguntou a Soraya quando entraram no ônibus.
– Não sei. Samuel cadê a Clarissa?
– O Jorge ia largar ela em casa. Ele está com o carro da empresa.
– Obrigada.
– Achei que seria rápido lá. – comentou Lúcia.
– São muitos detalhes. E provavelmente eles iriam passar na empresa contratada para conversar.
– Achei que eles realizavam as reuniões dentro da Ambiente.
– Por via de regra sim. – Soraya começou a explicar – mas a empresa de decoração fica próxima a Ópera de Arame, não havia sentindo virem pra cá.


Quando Clarissa chegou em casa, o ônibus dos funcionários já estava retornando. Suas costas doíam muito, e o remédio receitado pelo médico ainda não fizera efeito. Soltou o cinto devagar. Jorge a olhava preocupado.

– Você está bem?
– Bem, bem eu não estou. Mas vou sobreviver.
– Se você precisar de qualquer coisa, pode contar comigo.
– Obrigado Jorge. Você já foi muito gentil me levando médico. Pode ir descansado, não quero que briguem contigo por chegar atrasado em casa.
– A única pessoa que poderia brigar é a minha mãe – Jorge disse enquanto pegava as mãos de Clarissa – mas ela ia ficar feliz de conhecer você.

Clarissa não sabia o que dizer. Muito vermelha, murmurou uma despedida e saiu do carro. As dores nas costas milagrosamente sumiram. E seus pés pareciam estar caminhando sobre as nuvens. Entrou no elevador com olhos sonhadores e somente quando colocou a chave na porta, lembrou da pedra de Lúcia.

Nesse momento, todas as luzes se apagaram e suas mãos tremeram. Sentiu algo passando rente ao seu corpo. Em desespero, girou a chave, quando deu a segunda volta as luzes voltaram. Abriu a porta e encontrou suas duas colegas terminando de arrumar a mesa.

– Chegou bem na hora hein?! Brincou Lúcia.
– O que houve, Clarissa? – Soraya perguntou.
– Nada.
– Você está com uma cara estranha. – Soraya a olhava com o semblante sério.
– Estou cansada. Só isso.
– Como é a Ópera? – Lúcia perguntou, tentando distrair as duas.
– Bonita. Muito bonita. – Sentou-se com cuidado, colocando a cabeça para trás e fechando os olhos. – Vamos ir lá qualquer dia. Mas todas de tênis.
– Você está machucada? – Soraya sentou-se também.
– Eu... eu cai lá.
– Tadinha. – Lúcia serviu chá para todas.
– O que aconteceu? – Soraya questionou, querendo detalhes.
– Meu salto prendeu na grade da ponte e eu cai – mentiu – mas me esqueçam um pouco e contem: como foi o primeiro dia de Lúcia?

Animadas, as duas começaram a contar sobre o passeio que deram na empresa, as pessoas que Lúcia conheceu e as suas primeiras impressões.

– Heloísa é fantástica. – comentou Lúcia, com um sorriso de orelha a orelha.
– Você diz isso porque não conheceu o chefe da Clarissa. – Soraya suspirou. – Jorge é tão lindo.
– Hum... romance no ar?
– Não pra mim. – Soraya riu – Ele é toda da Clarissa. Tanto que eles se tratam como colegas e não como chefe e subordinada.
– Pare de falar besteira. – Clarissa ficou constrangida. – O Jorge é apenas um rapaz querido. É que vocês estão acostumadas com os Júniors da vida.
– Me diz – arqueando as sobrancelhas, Soraya a encarou – se ele se aproximasse de ti, tu não irias derreter?

Por um momento, Clarissa sentiu novamente as mãos quentes de Jorge segurando as suas.
– Eu vou é tirar a mesa. – Levantou com o rosto vermelho.

Lúcia e Soraya caíram na gargalhada. Enquanto Clarissa levava os frios para a cozinha. Não iria contar nada para elas agora, ainda não era o momento. Não sabia se Jorge falava sério, e não queria virar amante de ninguém. Ainda duvidava que um homem como ele não tivesse nenhum tipo de relacionamento.

– Eu vou para o meu quarto, separar umas coisinhas para colocar na minha mesa particular. – Clarissa ouviu Lúcia comentar alegremente.
– Gostou, né? – Soraya brincou.
– Amei. E uma das coisas que irei levar é a pedra que vocês me deram.

Clarissa fechou a porta da geladeira, sentindo-se tão gelada quando os alimentos que ali estavam. Sem pensar, foi para a sala, mas Lúcia não estava mais lá. Caminhando até o quarto, não sabia como se explicar, mas não tinha tempo pra isso. Quem mandou pegar algo que não lhe pertencia.
Torcendo as mãos, parou no meio de corredor que dava acesso aos quartos. Não sabia o que dizer e resolveu que o melhor era simplesmente falar a verdade.

– Lúcia. – chamou dando uma leve batida na porta.
– Diga. – Lúcia se virou para ela, e em sua mão direita estava a pedra triangular.

domingo, 7 de novembro de 2010

Capítulo Quatorze

Belo Horizonte, Cidade Jardim

– Estou morto – suspirou Antônio – Quantas peças ainda faltam?

– Poucas. A biblioteca, a sala de jantar íntima, os três banheiros sociais e os dois quartos de hóspedes.

– Só?! – Antônio riu – que semana.

– Isso sem quebrar nada. – Vivian salientou.
– Ainda bem. Depois daquela maldição de que qualquer peça quebrada iria restaurar todas as maldições, eu que não iria me arriscar.

– É verdade. Incrível como ela estava preparada. Como se tivesse adivinhado tudo o que mamãe pensava. Como se soubesse que viríamos aqui.

– Ou para se precaver, no caso de outra coisa ruim vir morar aqui.

– Não havia pensando nessa possibilidade.
– Podíamos mandar essas fotos para o Guiness.
– Pra que?

– Para colocar como a casa mais amaldiçoada do mundo. Nenhuma peça se salva. Estamos a uma semana limpando isso aqui.

– Por isso acho que ela vinha se preparando há muito tempo. Ninguém faria isso em uma noite.
– Talvez desde que ela ficou sabendo do desejo de Carlos se casar com Irina.

– Pode ser. Mas um mês realizando rituais diários, isso mataria qualquer pessoa.

– Como matou, Vivian. Imagino que naquela noite ela deve ter se excedido, talvez feito à maldição para a sua mãe e para o doutor Adriano. E por isso morreu logo em seguida ao seu filho.
– Não havia pensado sobre esse ponto de vista.

– De qualquer forma, nunca saberemos as reais intenções dela. Ao mesmo tempo em que repele estranhos com maldições, impedindo qualquer pessoa de morar aqui, parece atrair os que poderiam ter alguma ligação com ela.
– Mas não sobreviveu nenhum parente dela, para atrair alguém com laços familiares.

– Não digo laços de sangue, mas como o que você tem com ela. Você a conheceu criança, e a sua mãe lhe designou uma missão em relação a ela. E tem os herdeiros de Irina.

– Laços invisíveis. Incrível como um fato mexe com a vida de todos.

Vivian olhou para as paredes da casa. Sabia que nessa madrugada poucas peças estariam iluminadas, e que em mais dois dias tudo estaria terminado. Sua mãe não a questionava mais, nem lhe cobrava tanta pressa. Talvez nem ela imaginasse que madame Elvira iria exigir cuidado dos que resolvessem exterminar com sua maldade. Mas ainda faltava a parte mais importante da missão.

– O que me angustia Antônio – começou – é que não encontramos nada relacionado aos herdeiros. Minha mãe acreditava, e hoje eu também acredito, que eles correm risco de vida.
– Só que nenhuma maldição era destinada a eles. – Antônio completou seu pensamento. – Vamos ter calma. Ainda não completamos a limpeza. Ou sua mãe tinha lhe dado alguma indicação?

– Não. Nenhuma. Mas imaginava uma área nobre... embora as áreas relacionadas aos hóspedes tenham algum sentido.

– Abrigo para estranhos.

– Não, para inimigos. Um dos quartos, que eu não me lembro qual, era sempre destinado às pessoas que não eram bem-vindas por madame Elvira. Embora nenhuma dessas pessoas soubesse desse fato.

– E o que acontecia com elas?

– Não sei. Elas sempre iam embora no outro dia, sem tomar café da manhã.
– Como dizem os meus filhos: Sinistro.
– Não brinque, Antônio.

– Se não brincarmos, vamos enlouquecer. Às vezes acho que esse é o segredo: não levar a sério toda essa história de bruxaria. A nossa mente pode alimentar essa crença, tornando-a real. Daqui a pouco estaremos vendo coisas.

– Não creio nisso. Pois estaria transferindo tudo o que aconteceu com madame Cristina e doutor Adriano, para a minha mãe.

– Por que?

– Porque ela era a única que sabia. E minha mãe jamais faria mal a ninguém.

– Claro que não. Tia Catarina foi à pessoa mais bondosa que conheci.
– Então não subestime o poder de madame Elvira, Antônio. Isso pode custar nossas próprias vidas.

No domingo à tarde, Vivian decifrou os últimos códigos e decifrou suas maldições. Nenhuma referente a Irina ou seus herdeiros. Onde? Onde está? Olhou para Antônio e viu em seus olhos a esperança de terem terminado. Sabia que ele estava com saudade de casa, da sua família. Só que não podiam ir embora, apenas metade da missão havia sido feita.
Deitou na cama, fechou os olhos e esperou. Quando sua mãe a acordou, nenhuma luz entrava pela janela. Andando na ponta dos pés, Catarina levou Vivian pela porta, atravessaram o corredor e abriram a porta da sala. Caminharam até o jardim e olharam para a grande casa, que se encontrava escura, fechada e silenciosa.

Sendo puxada pela mão, Vivian se viu entrando na casa, apenas as suas sombras se movimentavam. Quando tentava falar, para perguntar o que estava fazendo ali, sua mãe colocava a mão nos próprios lábios, indicando silêncio.

Se dirigiram ao escritório do doutor Adriano. Catarina abriu a terceira gaveta e tirou de lá uma fita do Senhor do Bom Fim. Vivian também tinha uma, havia ganho de madame Cristina, quando ela e o marido haviam retornado de uma viagem a Bahia.

Catarina abriu a mão direita de Vivian e colocou a fita lá.


Quando o sol invadiu o quarto, Vivian abriu os olhos. Havia dormido além da conta. E pelo silêncio, Antônio também. Notou que havia algo em sua mão. Ao abrir, viu a fita do Senhor do Bom Fim. Levantou e guardou na primeira gaveta da única cômoda que havia no quarto. Se arrumou e foi tomar café da manhã.

Antônio estava na mesa da cozinha, lendo o jornal. Levantou os olhos e lhe sorriu.

– Bom dia prima. Quais os planos para hoje?

– Atender a corretora. Para assinar os papéis da compra da casa. – Pegou um pão e uma faca. Procurou pelo pote de margarina antes de falar novamente. - Depois tenho que pensar.
– Os herdeiros? – Antônio foi até a geladeira, pegou a margarina e a entregou para Vivian.

– Sim. Obrigada. – Vivian abriu o pote e com a faca começou a preencher o pão. - Deve existir, em algum lugar, alguma coisa relacionada a eles.

– E se ela não fez nada?

– Tenho certeza que ela fez. Irina lhe tirou a única coisa que realmente amava: seu filho Carlos.

– Olho por olho.

– Exatamente.


– Está gostando da casa, Vivian? – perguntou a corretora.

– Sim, Mariana. É uma casa maravilhosa.

– Realmente, ela é divina. Acho que mais bonita que ela, só uma outra que vendi ontem, no BonFim.

– BonFim? – Vivian arregalou os olhos.
– Sim. Aqui em Belo Horizonte, perto do centro, temos um bairro chamado BonFim.

– É verdade, eu já havia esquecido.

– Se a senhora tiver tempo, vale a pena visitá-lo. – Disse abrindo uma pasta marrom. - Bom, aqui estão os papéis, rubrique as primeiras páginas e assine na última.
– Certo.

Enquanto Viviam rubricava, sua mente funcionava a todo vapor. Terminada a parte burocrática, conversou mais algumas amenidades com a corretora e depois a acompanhou até a saída.
Entrou na casa dos empregados. Antônio assistia um filme antigo, que passava pela vigésima vez na televisão.

– Antônio, se arrume. Vamos sair.

– Nossa! O que houve?

– Acho que sei onde está a maldição dos herdeiros.

– E pelo jeito não está na casa.

– Não. Com certeza não está.

Vivian foi até o seu quarto, e encontrou a fita em cima da sua bolsa.

– Não precisava mãe. Já descobri. – disse em voz alta.


Vivian fechou a porta. Antônio já a aguardava dentro do carro. Abriu a porta e sentou-se ao seu lado. Fechou a porta e colocou o cinto sem dizer uma palavra. Antônio a aguarda, cheio de expectativa.

– Então, para onde vamos?

– Para o bairro BonFim.

– Bairro BonFim? Aquele perto do centro?

– Isso. Você já o conhecida? – Vivian olhou para Antônio que apenas levantou os ombros.

– Li sobre ele no jornal. O que vamos procurar lá?

– O cemitério do Bonfim.